Literatura Contemporânea, de Fernando Bonassi, e o Escritor Diletante


Todo escritor dirá então: louco não posso, são não me digno, neurótico sou.
Roland Barthes, O prazer do texto.

"Para o escritor, os livros tornaram a existência mágica, mas não consta que tal magia tenha contagiado a própria existência.” Essa frase dos primeiros momentos de Literatura Contemporânea, novo monólogo de Fernando Bonassi, abre as cortinas da vida de um escritor que se debate entre a utopia da vida artística e a crueza das letras de hoje. A vida em literatura nos dias de hoje é um assunto que permeia páginas e discussões, assombrando quem de fato tem o ofício da escrita como sua profissão. O verdadeiro valor da literatura engalfinha-se com o lucro almejado com a cultura, que antes era detestado por quem possuía amor à arte e hoje, em tempos “globalizantes”, é fonte de renda de muitos artistas. O ator César Figueiredo cumpre bem a função de representar o autor agoniado com sua condição de “escritor contemporâneo”. Desfia as situações ideais, aparências, e as desmantela em seguida com a realidade daquele autor em decadência. Deixa a nós, escritores diletantes, o receio de prosseguir por tortuoso caminho, que pode acabar na verdade daquele escritor descrito com a ironia-navalha de Bonassi, com convicções esfareladas pela crueza do mundo que destrói aos poucos a verdade dos artistas, enredados por aquilo que abominam.
E então? Desistem os escritores diletantes?
Não. São centenas de milhares em um caminho estreito, dificultoso. Tão poucos os observam, mas eles, obstinados, não param nem para beber um pouco de água, sorvem apenas letras. Entre tantos os entremeios e afazeres, deturpam a cronologia e subvertem a ordem mundial, desdobrando-se em cidadãos economicamente produtivos. Porém, em suas entranhas, em suas veias, murmura um verme ardiloso, um mal que não se extirpa nem com tratamento de eletrochoque: a literatura. A exposição a esse veneno é sutil, lenta, mas quando agarrada, a vítima não consegue se desvencilhar de suas garras afiadas, que atacam primeiro o cérebro, turvando-lhe os pensamentos julgados sãos pela sociedade, depois os olhos, auferindo lucros consideráveis à indústria oftalmológica, em seguida toma todo o corpo, sentem-se as costas doerem, os braços latejarem, o pescoço endurece.
Essa é a difícil trilha de um escritor diletante. Daquele que enfrenta o mundo e seus ditames vergonhosos para fazer literatura. São advogados, cozinheiros, médicos, estudantes que se estapeiam nessa senda pedregosa e árida que é o fazer literário, num país em que se lêem em média pouco menos de cinco livros per capita (e se compram apenas dois, vale lembrar). E mesmo com essa sorumbática perspectiva em mãos, lançam-se desesperadamente com o sonho de um lugar ao sol, sobre pilhas e mais pilhas de livros. Sofrem de pobreza crítica, claro, pois a fortuna a qual almejam está ainda há centenas de páginas à frente de sua história. Ou não, se por um golpe de sorte, muito empenho e, acima de tudo, um bom texto, esses diletantes encontrarem um bondoso editor que os acolha, lhes dê proteção, alimento para seu ofício muitas vezes oficioso.
Mesmo os que trilham toda a via do diletante e começam a vida literária de fato e de direito ainda carregam uma difícil missão: manterem-se firmes no mercado editorial, encouraçar-se contra a crítica vilipendiosa, fazer-se presente em eventos sociais, lançamentos, vernissage, inaugurações de livrarias, aniversários, bodas de ouro e afins, tudo em prol de segurar-se na crista da onda, até o próximo tsunami editorial. Ah, foi-se o tempo do escritor solitário, da figura misteriosa do flanêur, do símbolo de reclusão quase eremita à frente dos livros, papéis, máquinas de escrever e lixeiras. Se existe, não sei, mas houve a época do escritor que nunca deixava de ser diletante, apesar de já ter as rédeas das frases, apaixonado, amador no sentido mais profundo da palavra. Hoje, engolidos pela imídiatice, deparamo-nos com informações demais e conteúdo de menos, embaladas para viagem, pasteurizadas. Aparvalhados, tentamos vir à tona e respirar um pouco o ar fresco da literatura feita com o carinho de antigamente, do jornalismo respeitoso como na sua época áurea, dos textos acalentados como rebentos únicos.
Longe de mim, escritor diletante, ser saudoso de algo que não vivi, que apenas usufrui em cópias e documentos que a minha mão chegaram por força do destino ou pela procura incansável pelo prazer de um bom texto. Contudo, trago comigo o pensamento prazenteiro de que, apesar do veio tão inóspito que escolhemos, por mais doloridos que sejam os espinhos da rosa enredomada da literatura, nos comprazemos quase que em êxtase masoquista com as dificuldades da trilha.
Fica ao escritor diletante, ainda assim, um singelo aviso: deixe de lado a síndrome de Rapunzel, pois de cima da torre nada acontecerá. Escrever é também uma profissão, não só de fé, mas de suor e labuta. Pense que vai, escritor diletante, viver de amor às letras e morrerá de fome no primeiro mês. Os mecenas modernos têm contas a pagar, funcionários a remunerar, gráficas a prestar contas, balanço, demonstração financeira, contas a pagar. Vivemos num mundo de números, de cifras. O rolo compressor do dinheiro não perdoa o artista, que tem seu pão a ganhar. O mercado editorial, como qualquer outro, vive de um produto, sem melindres de chamá-lo assim. Ingênuo podem ser seus personagens. Você, escritor diletante, nunca!
E que nos guiem, os mestres de ontem. Que nos iluminem os artistas de hoje. Que nos aguardem as páginas do amanhã.

PS1: Literatura Contemporânea, de Fernando Bonassi. SESC Avenida Paulista, Espaço Provisório do 13º andar. Até 21 de setembro, às 20h00. De R$5,00 a R$20,00. Confiram também a Comideria do SESC, no 15º andar, para ter uma visão privilegiada da Paulista e comer um pãozinho de tapioca maravilhoso.

PS2: Essa não é uma matéria paga. Imagem: http://www.ivanjeronimo.com.br.