Pequenas desgraças noturnas

Naquela noite, a chance. Tão presa, reprimida. Sua pele e seus olhos denunciavam a medida do seu claustro e, naquela noite, se desgarraria das tradições, da submissão, dos olhos baixos e baixa guarda à voz de seu homem. 
Você já pediu pro seu pai? perguntou a mãe, aflita, à meia voz. Em meneios leves de cabeça, silenciava a sua rebeldia, não pediria a ninguém. 
Na bolsa, todo seu arsenal. Casa da amiga, troca de roupa, cair na noite, esse era seu plano de libertação. Não haveria quem impedisse: sem o olhar aquilino do pai ou a baba venenosa da mãe se veria solta para ter ao menos naquela noite seu momento de mulher, deixaria de ser tão-só um objeto de cama e mesa. Num lugar desconhecido, no aniversário de seu amigo gay. 
Uma pequena porta da avenida Nove de Julho, à meia noite. Sua identidade acusava o rosto de menina comportada e os dezoito anos que não condiziam com seu traje. O segurança olhou desconfiado, mas deixou passar a menina, não sem antes conferir a bundinha empinada na microssaia que trazia colada ao corpo. A música do bar já estrondava, algo que ela não estava acostumada, mas a festa só havia começado. Os olhares não estavam sobre ela, impossível, toda essa produção para nada. Então empinou-se e começou a falar alto, puxava as outras amigas pelo braço, fingia-se meio bêbada e jogava-se nas pessoas. Não se reconhecia, mas não se importava com isso. Perdera o pouco que tinha de compostura com os dois copos de vodkas tomados pouco antes, num bar ali perto.
No meio de uma música na qual ela rebolava e descia esticando ao máximo as meias arrastão, com as mãos nos cabelos negros e boca entreaberta numa tentativa de ser sensual escorregou. Toda ela foi ao chão, como em câmera lenta, aos poucos. Os amigos tentaram segurar, mas não havia jeito, agora bastava rir. Sua microssaia na cintura e os fios rompidos da meia arrastão davam um ar tão patético quanto a alguns segundos, enquanto requebrava em desespero com a música pouco dançante. 
Naquela noite, a decisão. Saiu do bar naquele momento, envergonhada, entristecida, com a maquiagem borrada pelo choro incontido. Envergonhou sua fantasia, decepcionou sua esperança, então não havia saída. 
O arakiri a esperava em casa...