Memórias

No canto da noite ele se esgueira, sujo. 

Sujo. 

Sem o menor pudor se enlameia, se debate e chafurda, não se intimida e rola no lamaçal. Cheira a mijo, cheira a podridão. Disfarça com perfumes de flores murchas recém-tiradas de cemitérios abandonados. Arrasta-se, reptício, sem pudor nem vergonha. É sujo. Exala nojo por sua pele escurecida pelas camadas de sujeira, em seu cabelo os piolhos e pulgas se refestelam, gordas daquele sangue imundo.

No canto da noite ele espreita a chuva que pousa sob a pele, uma chuva oleosa, grudenta. Forma uma pele d'água sobre a pele ferida, deixando-a reluzente, uma pele de lagarto. Ele sorri um hálito pútrido de dentes careados e amarelecidos, solta em golfadas de ar gargalhadas que empesteiam o ar úmido. Há mais de mês não via uma gota sobre seu corpo que não fosse o próprio suor nas suas andanças por baixo de viadutos, entre os desvãos dos becos inacreditáveis. O gosto de pó se desfazia aos poucos de sua língua arroxeada com o toque delicado daquela chuva gordurosa, o que importava era que a chuva caía, delicada, como se tivesse cuidado ao encostar naquele ser.

No canto da noite ele sente aumentar, pouco a pouco, a intensidade das gotas. Não enxerga direito, seus olhos purulentos escorrem num choro involuntário que se confunde com a chuva morna que desava como um véu torrente. Ele espera chegar aquilo que chama de lar em alguns minutos. Tropeça em montes de sujeita, pedaços de um passado recente o bastante para doer, remoto o suficiente para deixar de lado. Como de costume, bate três vezes na porta de madeira podre, mesmo sabendo que não há ninguém para abrir a portilhosa daquele pardieiro fedido. Entra e, entre goteiras e ratos que tomam conta do pequeno quadrado de concreto, alcança um armário azul claro, daqueles bem antigos, e após remexer em algumas gavetas retira o pequeno caderno de uma caixa de madeira, envolto em três sacolas plásticas. Na última sacola, o lápis, já quase um toco, que ele pega com a ponta dos dedos rachados. 


No alto da página amarelada, as garatujas formavam a primeira frase daquele pequeno diário de imundice: 

"No canto da noite ele se esgueira sujo. Sujo..."