A massa se move no firmamento num vôo largado, num sono de morte que se repete desde tempos imemoriais. Sem destino nem esperança, como nave de um corpo só ela vaga pela imensidão utilizando apenas seus sensores em busca de um pouso que lhe dê alguma paz e o alimento vital. Até que sente uma suave vibração vinda de um ponto especial embaixo dela. Leve, mas o suficiente para que seus sentidos aguçados lhe indiquem o caminho, e então se deixa cair.
Quando dá por si, está numa rua erma de uma cidade qualquer, que se divide em casas de alto padrão de um lado e um condomínio de luxo do outro. Em suas bunker-guaritas, os seguranças estranham a mulher que surge de repente, mas logo desviam a atenção. Imaginam que deva ser alguma visita saindo de uma das residências, pela forma como se veste e anda.
A tarde mergulha na noite, levando com ela os derradeiros traços púrpura de um céu onde a lua começa a se impor. Embora o último fio de claridade fira seus olhos, nada é novo para essa mulher de existência trágica e solidão sem fim. Mais um vôo, mais um pouso e a certeza de que Lucius, o maldito, logo virá em seu encalço. Mas desta vez sente algo diferente, não sabe precisar o quê.
Comandada apenas pelos instintos, ela se aproxima do ponto exato que a atraiu: uma janela no segundo andar de um casarão branco. Em segundos, Aurélia se vê lá dentro, invisível a olhos humanos. É um quarto de rapaz, que cochila sobre os livros. Do computador ligado sai música agitada, percussiva. Ele acorda como que pressentindo algo, olha para trás aparentemente incomodado, mas logo decide esticar o corpo na cama, vestindo apenas uma bermuda justa. Aurélia aproveita para observar o garoto num sono à solta, barriga para cima, braços cruzados sob a cabeça, um pé apoiado em ângulo sobre a outra perna dobrada, totalmente relaxado.
É a mais pura beleza em pele bronzeada, músculos precisamente definidos. Não deve ter mais que 17 anos. Sua vontade é pular sobre ele e sugar sua vida, mas Aurélia se contém. Para ela só vale se for consentido, nem que a sedução seja trabalhosa. Com esse propósito, vaga pelo quarto em busca de dados sobre a presa. Pelos livros na escrivaninha, descobre que está no cursinho e se prepara para o vestibular de Odontologia. Pelas fotos, vê que é de família abastada, viaja bastante, tem um irmão mais velho, uma irmãzinha pequena e muitos amigos.
Volta a observar o rapaz e pelo movimento dos olhos percebe que começa a sonhar. Alguns músculos em sua face se movem de forma quase imperceptível e quando um volume começa a se desenhar dentro do calção, alguém bate à porta. É a empregada chamando Danilo para o jantar, lembrando-o que precisa se apressar, pois logo mais tem o aniversário de Tina, sua amiga de infância. Animado pelo que a balada promete, levanta-se de um pulo e se junta à família para a mais uma refeição tensa daquela casa. Danilo não fala com o pai há muito tempo.
Aurélia observa a cena e começa a planejar a estratégia para logo mais. Finda a sobremesa, depois de vários telefonemas, Danilo sobe para se arrumar. E Aurélia se delicia em observar a libido poderosa do menino enquanto ele se toca naquele banho interminável até relaxar seus instintos com uma espécie de grito abafado e rouco que lhe sacode o corpo até a última gota, tão forte que lhe amolecem as pernas. A noite promete, pensa ela.
Se a ducha foi demorada, a escolha da cueca, camiseta, jeans e tênis – tudo de grife, claro – foi rápida e certeira. Decidido, ele não perde tempo com esses detalhes, pois tudo parece lhe cair muito bem. Logo avisam que Ramiro, o amigo da carona, está lá embaixo esperando. Ele desce as escadas numa carreira, mas não sem antes se despedir da mãe e da irmãzinha com um beijo e um afago.
Assim que entra no bar, Danilo atrai os olhares de todos e todas. Simplesmente encantador, tem sorriso fácil e olhar alegre. Há muito que Tina o cobiça, mas ele parece não notar. Assim que o vê, a garota pula para seu lado, cheia de afeto. Ele a abraça carinhoso, mas distraído, pois não consegue tirar os olhos de uma mulher que entra, toda vestida de negro, pele muito branca, cabelos escuros enrolados no alto, presos com um palito oriental.
Aurélia sabe se fazer notar. Senta lânguida no balcão, lança olhares faiscantes à sua volta, pede um campari vermelho como suas unhas, cruza as longas pernas e apenas espera. Em menos de cinco minutos Danilo está ao seu lado, a pretexto de pedir uma bebida ao barman, seguindo um apelo absolutamente irresistível. Jovem demais, não sabe como abordá-la, mas ela encurta o caminho. “Você tem uma boca interessante”, diz ela, num sussurro. Estimulado e sem ter a menor ideia do tamanho da encrenca que estava diante dele, arrisca um “Quer provar?”. Aurélia oferece os lábios que ele a principio roça, mas depois suga com toda a volúpia adolescente que lhe atiça estômago e membros. Que mulher é essa? pensa, quando acaba o turbilhão e, atordoado lembra-se de Ramiro. Pede licença, prometendo voltar logo. “Nem pense em sair daí, moça”, avisa o menino ingênuo, cheio de moral.
Ele dá uma volta rápida pelo ambiente, mas não encontra o companheiro. Inquieto, vai ao banheiro. Sente que precisa se acalmar antes de voltar àquele mistério em forma de fêmea que o espera no balcão. Há muito tempo não presta atenção em mulher alguma, desde que teve um envolvimento com Ramiro, o que provocou a ira de seu pai, que simplesmente não lhe dirige mais a palavra. E, de repente se dá conta que o amigo pode ter visto o beijo com a tal mulher e tenha se enciumado. Devia ter mais cuidado com esses arroubos, pensa enquanto abre o zíper. Só então se dá conta que há alguém com perfume estranho e inebriante também urinando a seu lado. O outro o observa atentamente, sem a mínima questão de disfarçar o olhar insistente para suas mãos ocupadas.
Nota que o homem ao lado não é propriamente bonito, mas um tipo bastante interessante, maduro, cabelos prateados. Elegante em seu traje todo negro, o tal homem, de forma bastante sedutora começa a falar num tom que o hipnotiza, elogiando os contornos e a virilidade do rapaz. E quando ele se vira para lavar as mãos, o outro chega mais perto, mas de lado para não ser visto no espelho, tocando suavemente seu ombro, como num convite. Um arrepio percorre a espinha de Danilo, detonando uma excitação irrefreável, animal. Danilo tem medo de que alguém entre naquele momento, mas isso também o deixa enlouquecido. Não apenas seus lábios molhados, mas também o suor em seu rosto denuncia o tesão. O homem sorri, tocando de leve o queixo imberbe de Danilo, que abaixa os olhos e, sem pensar, suga o dedo do homem com vontade, sentindo um gosto que lhe faz lembrar sangue.
Confuso pela sua atitude, Danilo lembra como Ramiro o recebeu no carro com um abraço demorado e um sorriso confortador. No caminho para o bar, suas mãos se tocaram diversas vezes e a paixão de ambos era indisfarçável. Porém, quando estavam em turma, fingiam que nada acontecia entre eles, eram apenas bons e íntimos amigos. Esse era o combinado, e assim Danilo conseguia também matar suas vontades.
Nesse momento, Aurélia materializa-se naquele toalete masculino, e com voz baixa e grave, dirige-se ao grisalho: “Lucius, que maldição, você vive na minha cola! Larga já desse menino, eu o achei antes”.
Danilo não entende nada. Como aquela mulher surgiu no banheiro, sem que a porta fosse aberta? De onde ela veio? Que beijo encantado no balcão foi aquele capaz de o perturbar tanto? E o homem, com uma beleza incomum e tão insinuante ao seu lado? Como que um simples toque de mão detonou um desejo tão absurdo? Danilo observa aqueles dois se enfrentando com olhos vermelhos, injetados. Quanto ódio no ar... O que será isso, uma espécie de maldição ancestral? Corre para se proteger, tenta se trancar em uma das cabines, mas Lucius avança em sua direção e arranca a porta com uma só mão. Antes de alcançar o rapaz, Aurélia toma o inimigo pelo braço e, jogando-o com força para o lado, estilhaça o espelho com o corpo do outro. Vê a oportunidade agora de liquidar com sua sede, mas não conta com uma nova investida de Lucius que, pendurado no teto feito uma lagartixa assombrada voa rumo a seu corpo com garras furiosas, rasgando o vestido na altura do peito, a última imagem da qual Danilo seria testemunha.
E o que se viu ali, naquele banheiro de bar virou lenda entre a galera de classe alta. Foi uma batalha sangrenta entre dois seres lutando por uma fonte nova de sexo, prazer e sangue. Quando tudo serenou, Ramiro foi procurar o companheiro no que restou do aposento destruído. A única pessoa que amara até então jazia no meio do toalete, a roupa toda em frangalhos e estranhos furos no pescoço, tornozelos e, sobretudo, na virilha. A família foi chamada, o desespero se instalou. A autopsia concluiu morte por hemorragia externa devido a lesões perfurativas de origem desconhecida. E Ramiro, aos 30 anos, com flores nas mãos e rosto marcado por lágrimas doloridas foi impedido de entrar no velório.
*Texto feito em parceria de Laura Fuentes & Petê Rissati