Parada

A festa acabou. Os postes e as luzes da rua me enganam. Trôpego sigo entre os sons de uma comemoração já esvaziada de gente e sentido. Os gritos de um manifestante ainda ecoam por entre as árvores da praça, mas nada dizem a mais ninguém.  Volto para casa tranquilo, pois hoje é dia de festa, de comemorar a liberdade de ser eu mesmo, mas meu sorriso é censurado. Sinto o murro, de mãos fechadas nas costas nuas. Perco o ar, tento me erguer, acomodo a sola de um coturno na minha perna esquerda. Despenco em câmera lenta, ao menos assim parece. Urros me congelam, tento proteger ao máximo meu rosto, as partes baixas. Vão me espancar e eu me pergunto: quantos dentes preciso perder para ter meu minuto de fama, minha notinha no canto da página de um jornaleco? Até onde vai a nossa estupidez, humano? Começa a sessão: um, dois, cem chutes em todas as partes do meu corpo encolhido. O asfalto desfia minha carne, a dor desaparece, a consciência se esvai no fio de baba que escorre da minha boca estourada.  Mastigo caninos, pedaços de sisos. Não consigo reagir, nem falar. Na minha boca uma massa disforme de sangue, carne e ossos. Gritos. Correria. Alguém pede socorro, ele está morto, ouço que está morto, estou morto? Politraumatismo da face. Escoriações. Fratura exposta. Traumatismo craniano. Parada. Cardíaca.

(Em memória de Marcelo Campos Barros e de todas as vítimas desse último domingo triste em São Paulo.)