Dolores

O cheiro da madeira é mais forte. Dolores anda descalça, sua sob o calor da ilha, vê por entre as talas de madeira do cercado o canavial no qual seu homem trabalha. Debaixo do braço o pote de comida enrolado em um trapo, os olhos de Dolores se espremem, seus cabelos incomodam, mas ao menos nada veste por baixo da saia. De longe avista o chapéu de seu homem, o facão move-se rápido e impiedoso, lançando ao chão as varas de cana, quase sem esforço. Com o pouco que conseguiam com o corte da cana e às vezes com visitas de turistas ao seu casebre se alimentavam com arroz, feijão preto, frango. Não comiam um pescado há tempos, a casa ficava distante do mar, difícil conseguir uma carona para Havana.
¡Hola! grita Dolores dia após dia, esperando a cabeça do marido surgir por entre as canas não cortadas para depois seguir até ele, lhe entregar o pote, dar-lhe um beijo estalado e voltar aos seus afazeres. Mas nesse dia ele não aparece. Ela torna a gritar  e nada. Preocupada, a negra corre uivando o nome do homem, seguindo ruídos pelos caminhos de cana cortada, machucando os pés. Sente uma mão que agarra seu braço e a joga com força ao chão. É ele, seu homem. Desgraciado, hijo de puta, ¿te patina el coco?, ele a cala com um beijo demorado, que há muito não recebia com tanto empenho, aquela língua grossa que costumava fodê-la com vontade agora sufoca seus gritos. O calor a deixa zonza, ainda mais com aquele homem por cima dela, segurando suas mãozinhas com apenas uma mão imensa, vasculhando com os dedos da outra o corpo todo de Dolores, sem perdoar nenhum vão. Não havia testemunhas, a não ser as moscas que zumbem inquietas e pelo sol pendurado em rastros de nuvens. O casal passa a limpo as lições que haviam abandonado com tantos anos. Depois do gozo, esfomeados, partilham de uma exausta felicidade e do pequeno pote de arroz, feijão preto e frango.

(Texto criado para a Oficina de Textos Eróticos ministrada por Marcelino Freire no SESC Pinheiros. Foto de Roberto Guglielmo)