Mário Louco (ou "O grande círculo da vida")

Mário Louco tem oitenta e poucos anos. Desses todos, Mário Louco sempre teve uma vida humilde, mas amada. O sofrimento ronda até hoje os passos de Mário Louco. Não é chamado de louco à toa, muitos têm motivos para tanto. Agora, em um asilo em Atibaia, Mário Louco chega perto da sua alcunha de toda a vida. As pessoas se preocupam com ele, mas como uma criança, Mário Louco não se rende, diz que todos morreram para ele, que ninguém o ama. Tem problemas nos rins, está praticamente surdo e um câncer de pele o acompanha. Entre uma sessão de hemodiálise e outra, Mário Louco apronta uma. E lá vão os parentes, o sobrinho neto e sua irmã mais nova, hoje com 75 anos, salvar a pele do Mário, quando ele inventa de bater nos seus colegas de quarto. E ele, ainda assim, os maltrata, expulsa, insulta.
Antes disso, Mário era um senhor forte. Até os setenta e poucos anos trabalhou na roça, onde sempre viveu. Carpiu, tomou muito sol no rosto, perdeu mobilidade de um dedo por uma pá descontrolada. Alqueires e alqueires de mato ele baixou, plantou de tudo um pouco, viu o mundo mudar rápido. Chorou de dor, de amor, de ódio. Arranjou muitas encrencas para se manter, para ninguém chamá-lo de velho. Louco sim, velho nunca.
Nessa vida de carpir, criou os filhos. São alguns filhos, com algumas mulheres. Filhos que deveriam tê-lo ajudado, dado apoio, auxílio. Mas não, os filhos trouxeram foi muitos problemas. Bebedeira, drogas. E os filhos morriam para ele, não queria vê-los nem pintados num dia. Porém no outro, triste pela distância, os perdoava até que aprontassem novamente. Quando voltavam a morrer aos olhos do velho Mário. Mesmo com todo o fardo que carregava, o Mário era uma pessoa alegre, de bem com a vida, pronto para dar ajuda aos outros e muita bronca quando necessário. Se era louco de verdade, ninguém sabia. Que tinha um grande coração, ninguém desconfiava.
Entre os vinte e os cinqüenta, era sim, o Mário Louco. Trabalhava no bairro de Pirituba, numa empresa de ônibus coletivos, provavelmente a antiga CMTC. Era impaciente, aventureiro. As mulheres se encantavam por ele, pelo seu jeito brusco, pelo seu ar meio cafajeste e pela sua generosidade. Os filhos, inevitáveis, começaram a aparecer por aí. Com uma Celma, com outra Maria, com algumas Lurdes. Deve ter tido muitos casos, mulheres eram seu vício. Além da cervejinha abençoada, claro. As crianças também o adoravam. Certa vez, presenteou seu sobrinho-neto, um menino moreno que ao crescer se tornaria tradutor e escreveria um blog com nome de cor, com um martelinho. Era um martelo de verdade, com cabo esculpido pelo próprio Mário Louco, talhado com carinho de tio-avô. Sempre que falava com esse menino, lhe perguntava da escola e como era sua vida, os olhos de Mário Louco se enchiam de lágrimas. Era o de mais puro que ouvia nesse mundo que se estragava pouco a pouco. E se alegrava, como se alegrava.
Aos vinte, nos anos quarenta, vira a Segunda Guerra começar. Deve ter execrado Hitler com todas as suas forças, pois Mário é um homem justo, apesar de louco. Aos dez anos, deve ter brincado na roça e aprendido a matemática e português em casa. Aos cinco, tivera uma vida dura e muitos irmãos, inclusive o bebê Ivone. Nascera, no final dos anos vinte, o Mário Louco. Seu primeiro choro, no interior de São Paulo, ainda ecoa na antiga casa dos Marques. Mário Marques, filho de portugueses, é nosso amado tio. O Mário Louco, que todos amamos.