Se embrenhando nos becos, desgraçados, o menino corria, brincava. Sua bermuda amarela surrada, seus chinelos remendados não mostravam seu destino.
Baixou Oxalufã com as espadas de prata, com sua coroa de escuro e de vício
Baixou Cão-Xangô com seu machado de asa, com seu fogo brabo nas mãos de corisco
Em meio aos batuques do morro, no pandeiro e no atabaque, seu fado tilintou nos jogos de búzios. Mais que depressa as providências foram tomadas. Logo ele seria o rei daquele mundo cão que o rodeava. Acostumado aos tiroteios e aos corpos estirados pelo chão, ele não tinha para onde correr, vivia entre as corredeiras da chuva morro abaixo e os tiros morro acima, nas disputas de polícia, aprendia o que seria em pouco: reizinho nagô, com corpo fechado por babalaôs.
Ogunhê se plantou nas encruzilhadas, com todos os seus ferros, lanças e enxada
E Oxóssi com seu arco e flecha e seus galos e suas abelhas na beira da mata
Não media esforços, o menino, para subir. Já não era sem tempo, já não tinha por quê não: era o dono da boca, mandava e desmandava em seus súditos, dava conselhos ao povo que mal sabia ler e escrever, dos pais de família recebia tratamento especial, era bondoso com as crianças, impiedoso com os inimigos. E tinha inimigos, como os tinha, tantos que seus cães-de-guarda estavam sempre armados até os dentes. Um piscar dos olhos castanhos do garoto e estava armado o circo, com balas zunindo e estocando corpos do mal.
E Oxum trouxe a pedra e a água da cachoeira em seu coração de espinhos dourados
Iemanjá, o alumínio, as sereias do mar e um batalhão de mil afogados
Seu coração também batia quando via a negra Alice, de ancas largas e sorriso farto como seus seios. Paixão de menino, de pequeno que tem nos lábios o gosto da vida adulta. E ela se ria do garoto; quando Iansã vinha em seus gritos e gargalhadas, de espada nas mãos e vermelho nos panos, deixava o garoto em polvorosa, olhos brilhando como o cano que trazia na cintura. O atabaque queimava-lhe os ouvidos e sentia pelo corpo os trancos do barra-vento.
Iansã trouxe as almas e os vendavais, adagas e ventos, trovões e punhais
Oxumaré largou suas cobras no chão, soltou suas tranças e quebrou o arco-íris
Num dia, lhe chamou seu pai-de-santo e profetizou: tua cobiça será teu fim e se não acalmar tua gana não dura mais do que poderia durar. Riu de seu babá, dizendo que não havia corpo mais fechado que o dele, se não pelos Orixás, pelos ferros quentes dos homens. Nesse dia deu uma grande festa, com cerveja e pinga da boa. Não deixou nada faltar para seu povo, o pequeno reizinho do morro esgarçava seu sorriso satisfeito para quem quisesse ver. E bebeu, e dançou e tocou pandeiro como se arpa fosse, o anjo. Porém, havia outros olhos sobre o peito magro e desnudo do guri.
Omolu trouxe o chumbo e o chocalho de guizos, lançando a doença pra seus inimigos
(Texto inspirado na música Tiro de Misericórdia, de João Bosco)