Texturas

Zélia era uma moça estranha. Alta e magra, de olhos muito verdes e olheiras que denunciavam noites sem dormir ou anemia profunda, cabelos vermelhos-brasa, naturais se dizia, sempre de vestidos compridos e soltos, de alças, que deixavam entrever seu colo e seu pescoço muito brancos, nos quais o azulado das veias se acentuava ainda mais. Era quieta, quase sorrateira a Zélia, e inspirava confiança com seus lábios sempre delineados com um batom cor de chocolate e seus dentes tão alvos, abertos num sorriso belo e confortador. Era calma, controlada, quase calculista ao menor gesto, meneava com a cabeça de um jeito quase felino. Mas era sóbria e pouco se via o tal sorriso no local onde trabalhávamos.

Um belo dia a encontrei numa pequena livraria, dessas que ainda resistem aos tempos das megalojas de livros, sentada numa poltrona com um livro vermelho nas mãos. De seus olhos muito verdes brotavam riachinhos que lhe lavavam o rosto. Escondido atrás de uma coluna fiquei observando como lia: cada página que virava passava seus dedos finos de unhas apenas com base pelo papel escrito, suspirava longamente e enxugava uma lágrima e repetia o processo a cada página lida. Como se o que acabara de ler precisasse de uma confirmação tátil, se com aquele gesto meticuloso absorvesse um pouco mais da história. Às vezes, com olhar longínquo de quem vê o mar pela primeira vez, fechava o volume, passava a mão por sobre a capa lisa e nitidamente seu braço de penugem clara arrepiava-se sem, entretanto, tirá-la dessa espécie de transe.

Nesse momento inconveniente resolvi falar com ela, devagar, numa tentativa de saber o que fazia. Estava encantado com aquele gesto:

- Zélia? - disse leve, tocando seu ombro nu com pequenas sardas.
- Ai! - virou-se lépida, enxugando as lágrimas e escondendo a capa do livro.
- Desculpe, não queria te assustar. Entrei aqui e vi você, resolvi...
- Tudo bem, tudo bem.
- Você está bem?
- Sim, estou ótima. Você me pegou desprevenida...
- Desculpe, mesmo...
- Está procurando por algo?
- Não, gosto de livrarias. Vi essa aqui, tão simpática...

Nesse momento luziu aquele sorriso que pouco se via em outro lugar. Sempre sozinha, em almoços rápidos e pequenos sumiços, ninguém sabia muito daquela moça estranha. De onde vinha, para onde ia quando no meio do expediente pedia para sair e voltava com as faces enrubescidas.

- Esse lugar é especial - disse ela, com sua voz rouca.
- Sim, me parece.
- Para mim, quase sagrado, confesso. Onde eu me encontro, onde consigo me ver de verdade.

Silêncio se fez da boca de Zélia. Um silêncio de muitas vozes. Entendi seu silêncio, balancei a cabeça devagar e sentei na poltrona a sua frente. Ela corou, como uma menina envergonhada por algo que havia feito, falado. Seu sorriso se esvaiu quando abriu novamente o livro e leu:

"Riabóvitch deteve-se pensativo... Nesse ínterim, inesperadamente para ele, ouviram-se passos apressados e um frufru de vestido, uma ofegante voz feminina murmurou: 'Até que enfim!' e dois braços macios, cheirosos, indiscutivelmente femininos, envolveram-lhe o pescoço; uma face tépida apertou-se contra a sua e, ao mesmo tempo, ressoou o beijo."

Seus olhos fecharam-se e sua cabeça lentamente recostou-se à poltrona, deixando seus cabelos penderem como uma cortina vermelha sobre o couro marrom. Eu não sabia o que fazer, fiquei paralisado. Um sussurro de seus lábios deixou-me excitado e confuso ao mesmo tempo, "Tchekhov, O Beijo". Não conseguia conter o desejo de tomar aquela mulher pelo braço e arrancar-lhe daquele transe, levá-la dali e possui-la, deixar-me possuir.

- É bonito - disse eu, constrangido pela minha excitação aparente e pelo meu rosto que queimava. 
- Uma das descrições de beijo mais bonitas que já senti. Toque a página.

Estendeu o livro para mim. Ao tocar a página esbarrei em sua mão. Quente como o fogo. As páginas estavam mornas, como um samovar de letras e sentimentos. Lá fora ventava muito, as janelas batiam. Não consegui dizer palavra, apenas sentia o calor inexplicável daquelas páginas. Toquei seu rosto e avancei para um beijo, numa voracidade sem par. Ela, languidamente, se entregou àquele beijo e quando se acabou, me olhou triste. Uma tristeza irremediável, imemorial talvez.

- Me desculpe. Me perdoe, Zélia...
- Não se preocupe. Os escritores fazem isso com a gente. Agora preciso ir...
- Peraí, aonde vai?
- Voltar para minha vida. E você vai voltar para a sua vida.
- Mas...
- Até amanhã. Bom descanso.

Pousando o livro num aparador ao lado da porta, Zélia acenou com a cabeça para o dono da loja, que respondeu com um aceno teatral de mão, e saiu, sem olhar para trás, deixando apenas um perfume leve de jasmim no ar. Fiquei ali, em meio aos livros, apaspalhado. Acordado pelo dono da pequena loja do meu estado catatônico, fui delicadamente enxotado, pois era hora de fechar.

Depois disso, Zélia nunca comentou aquele dia, como se houvesse esquecido. Eu nunca esqueci aquele dia, mas também não comento. Como se fosse um grande segredo entre a gente. Em vez de beijos, ela agora me traz livros com cheiro de jasmim, marcados meticulosamente com sua letra miúda, com seu nome e uma data. Hoje ela trouxe O Beijo, me entregou com um sorriso maroto e voltou a sua mesa. Na sua terceira folha, no verso, sua letra miúda ria de mim:
"Seu beijo, entre capas e capítulos, me trouxe de volta à história. Zélia."
(Originalmente publicado em Letras e Vozes)