Quem olha para fora sonha. Quem olha para dentro desperta.
Carl Gustav Jung
Desde sempre tinha o mesmo sonho: estava à beira de uma prancha de madeira diante de um grande lago escuro, desequilibrava-se e a prancha estava prestes a rachar. Ao ouvir um estalo acordava, assustada e suada, vendo o horário no relógio. A meninice fora recheada desse mesmo sonho e na vida adulta não se livrara dessa experiência onírica. Em psicólogos, com seus amigos, em livros e afins a resposta era sempre a mesma: precisa mergulhar no lago para saber para onde ir. Mas era independente, tinha uma casa, um carro e sempre conseguia o que desejava. Porém seus olhos dificilmente se apaixonavam, de seu corpo pouco desfrutava, sempre ocupada com mil-e-um assuntos pendentes, outros quinhentos em andamento e mais uma infinidade a iniciar.
Naquela manhã, porém, o cinza tomava a cidade imperiosa, a névoa baixa não permitia que os olhos fossem além. O frio era intenso, sensação térmica das mais baixas do ano. Saiu de casa atrasada, o morno do cobertor não a deixara sair no horário, mesmo depois da prancha, do lago e do susto no estalo. Tentou permanecer na cama, para ver se o sonho continuava, mas como num filme repetido, a mesma cena: seus pés trêmulos, medrosos, a boca seca e lá embaixo as águas escuras, calmas, porém misteriosas. Levantou, nervosa por não conseguir dar o próximo passo, cair de cabeça no lago que a aguardava. Seria frio? E sua profundidade?
De casaco e cachecol entrou no escritório, seu primeiro atraso em anos e anos de empresa lhe rendia olhares desconfiados. Sentou em sua mesa e mal pousara daquela manhã alvoroçada frente ao computador seu telefone toca:
— Venha até a minha mesa.
Que droga, o chefe chamou. Mas justo hoje, que será que ele quer? pensou ela. E levantou, desenrolando o cachecol e largando-o sobre a cadeira.
— Está atrasada.
— Eu sei. Tive problemas para acordar.
— Sabe que a empresa não tem nada a ver com isso, não sabe?
— Eu sei. Mas eu tive...
— Já falou isso. Olha aqui, sabe que uma coisa que eu não tolero é atraso.
— Sim senhor, eu sei.
— E mais: chegou sem dar bom-dia a ninguém, ontem deixou um relatório pendente e não passou aquele trabalho para sua assistente.
— Mas é que eu estava...
— Ouça o que estou falando. Vou avisar apenas uma vez. – os olhos do chefe faiscavam – Seu próximo atraso e terei que tomar providências.
— Foram apenas 15 min...
— Não interessa! – o grito ecoou pelo corredor, como um trovão que acertava em cheio o peito da moça. O mundo e todas as suas escolhas até aquele momento flutuavam em volta daquelas duas palavras.
— Não grite assim comigo.
— Grito o quanto quiser!
— Então faça o seguinte: enfie o seu relógio de ponto ...
E saiu, em direção ao departamento de Recursos Humanos. Com o susto, o chefe não conseguiu impedir que ela agisse. Naquele momento pediu demissão, pegou suas coisas e, com lágrimas nos olhos, que se confundiam com ódio e alívio, abraçou suas duas únicas amigas no escritório e irrompeu porta à fora. Olhou a nevoenta paisagem sãopaulondrina, e não sabia o que fazer. Seu estômago doía, uma apreensão de ter deixado algo importante para trás. Havia tomado sua decisão, não voltaria atrás. Quebrara o laço, de vez.
Então decidiu passear. Perambulou por algumas ruas desconhecidas, entrou em pequenas lojas de roupas e de antigüidades, passou por uma livraria onde comprou uma pequena revista de palavras-cruzadas, seu vício, e sentou-se em um parque sob árvores anciãs. Secara o lugarzinho com o cachecol e sentou-se para fazer suas palavras cruzadas. Não sabe quanto tempo passou até que ouviu um barulho: livros ao chão, aos seus pés, a capa vermelha com um título estranho, quase engraçado, surgiu. Ela estendeu a mão para pegá-lo, mas antes disso uma mão forte recolheu o livro. Ao olhar para cima seus olhos não acreditaram no que viu:
— Desculpe, ia recolher para você. Está tudo ...
— Sim, sim, está tudo bem. Desculpe atrapalhar sua concentração.
— Não se preocupe. – e voltou ao seu passatempo. Porém sentiu um calor ao seu lado e percebeu, com um quê de incômodo, que ele sentara ao seu lado.
— Está um dia lindo...
— Está? Com esse céu nublado?
— Pense em tudo que está escondido atrás das nuvens.
Ela parou por um momento e pensou que realmente, ele tinha razão. O dia estava lindo. Os olhos verdes do homem eram lindos, profundos, como um lago. Ela havia deixado o emprego que a escravizava, estava fazendo o que gostava naquele momento, sem dar atenção ao dia, ao horário, apenas estava ali. Óbvio que em breve teria que procurar um emprego, mas naquele momento isso nem se passava na cabeça. Apenas a pele morena sob a barba por fazer em um queixo grande e o rosto quadrado e másculo tinham sua atenção naquele momento.
Ela parou por um momento e pensou que realmente, ele tinha razão. O dia estava lindo. Os olhos verdes do homem eram lindos, profundos, como um lago. Ela havia deixado o emprego que a escravizava, estava fazendo o que gostava naquele momento, sem dar atenção ao dia, ao horário, apenas estava ali. Óbvio que em breve teria que procurar um emprego, mas naquele momento isso nem se passava na cabeça. Apenas a pele morena sob a barba por fazer em um queixo grande e o rosto quadrado e másculo tinham sua atenção naquele momento.
— Meu nome é...
— E o meu é...
— Prazer. Eu preciso ir. Mas anote meu telefone, caso queira passar outro dia lindo como esse comigo, ok.
— Sim, sim. Uma pena que precise ir...
— Sim, sim. Uma pena que precise ir...
— Mas ainda nos veremos.
Ele tomou de pronto a caneta e a revista de palavras cruzadas da mão dela, num gesto rápido anotou o telefone, pegou seu livro vermelho e saiu. Ela ficara, com um sorriso maroto no rosto, terminando uma linha daquela palavra cruzada com a resposta à seguinte charada: As cores da Bandeira da França: Xxxxxxxxx, Igualdade e Fraternidade.
Desde sempre tinha o mesmo sonho: estava à beira de uma prancha de madeira diante de um grande lago escuro, desequilibrava-se e a prancha estava prestes a rachar. Porém nesse dia, ela não teve medo quando a prancha estalou.
Permaneceu firme e mergulhou...