Incompreensão

Tudo é vivido pela primeira vez e sem preparação. (...) É isso que leva a vida a parecer um esboço. No entanto, mesmo esboço não é a palavra certa, pois um esboço é sempre o projeto de alguma coisa, a preparação de um quadro, ao passo que o esboço que é a nossa vida não é o esboço de nada, é um esboço sem quadro.
 Milan Kundera, A insustentável leveza do ser. *

Não me olhe com cara de... não, não, não. Vivo sim, na rua. Por aí. É, eles gosta de dizer sem teto, em situação de rua... bonito, acho. Não vô pra lugar nenhum, pois a rua foi o único lugar que me acolheu sem... assim, modo de dizer. A rua é sincera, pelo... pelo menos é. Não me dá nada, não me exige nada, não me força... não força. Se tenho... tenho, sim, irmã, mãe, pai. Sim, com dinheiro. Vida boa. Classe média, média. E por que eu tô na rua? Não... também não. Por que quero. Não bebo não. Quer dizer, de vez em quando... frio, é o frio. Hoje não, tá quente, então gosto de água... obrigado, ahhhh, água gelada é bom. Sim, não vejo água tem dois dia. Banho é bom, mas só nos albergue. Só vou pro banho e fujo. Sou assim.


Nos albergue os outro de rua rouba o que a gente junta com o tempo. Eu junto umas coisa pra fazer arte. É o que eu faço. Tenho estudo sim. Ahã. Se não encontrei... sim, trabalhei, estágio... mas não sei. Chegue mais perto. Ah, tá bem assim? Tá, me acostumei com isso. A distância... não se preocupa, distância pra não... é não fica assim. Se ficar, rua, como eu, na rua. Banco, é o que me resta. As praça é frias, mas livre. Minha busca, a liberdade... essa coisa do contra, de ser do contra. Você é bonito, um bonito limpo, um bonito limpo e bem arrumado e cheiroso. Eu? Não, não quero... não consigo viver assim, com regras, preso. Sufocado, me sinto. Assim, sufoco...

Minha infância? Quando era criança... desculpe, sempre choro quando lembro... ai, desculpe... quando eu... via os mendigo, achava feio, ficava com medo. Meu pai dizia... ai...


Tudo bem... estou melhor. Meu pai... ele dizia olha, precisa estudar pra não virar um mendigo. E eu era o melhor da classe, fazia as lição. Sim, quero, estou com fome. Que bolachinha boa, não tinha visto dessa ainda. Faz tempo, sim... 5 anos. Vivo na rua, em albergue. Faço uns serviço, assim... cuido de carros quando dá. E já fui puto por dinheiro também, é ruim, mas eu precisava de dinheiro, estava com muita fome. Sim, obrigado... me disseram já que sou bonito. Muito bonito? Não acho... é meu olho, azul, do meu pai. O cabelo é da minha mãe, mas agora tô sujo, não dá pra ver. Mas é da minha mãe. Eu carrego comigo essa foto, olha, por isso não tenho saudade. Minha mãe, eu, meu pai. Minha irmã bateu essa foto. Ela sim é bonita, modelo. Sim, tem dinheiro, muito dinheiro. Dela tenho menos saudade, sempre está nas revista... quando tinha outdoor na rua, tinha minha irmã fazendo foto. Um dia me viu, na frente do shopping chique que tem aqui perto. Se assustou, tentou correr atrás de mim, eu corri mais, sumi... nunca mais a vi pessoalmente. Mas ela sempre está por aí, nas revista, cada vez mais bonita...



Não, muito obrigado. Da minha vida cuido eu, meu destino não existe e o futuro não me reserva coisas boas. Já me convenci disso, já me conformei. Não, de jeito nenhum. Talvez um dia, quem sabe... sim, há amor. Eu tenho um amor. Mas ele quer um lar, quer estar junto, estar... não, eu não estou. Nunca vou estar. Por isso estou aqui...

* KUNDERA, Milan. A insustentável leveza do ser. 8. reimp. Trad. Teresa Bulhões Carvalho da Fonseca. São Paulo: Companhia das Letras, 2006, p. 14.