Amarela, azul e vermelha

O coração do homem-bomba faz tun-tun, até o dia em que ele fizer bum.
Zeca Baleiro, O coração do homem-bomba

O homem descia a rua de pedras comendo um pão. O sol já estava à pino, insuportável era o calor que fazia daquele lado do mundo. A poeira desértica manchava a pele de todos, seus turbantes e barbas, olhos eriçados pelo menor ruído. O medo é uma constante daquele lado do mundo, o medo do inimigo que em nome da religião lança mísseis, medo do compatriota que faz a própria família de refém. 
E no meio da discórdia, aquele homem descia a rua comendo um naco de pão que estava em cima da mesa, ao lado de uma oração escrita em letras cuidadosas. Aquela oração pedia que Deus mandasse um pouco de descanso aos homens que se atiravam no fosso da ignorância, tornasse as mãos desses homens instrumentos de paz, não em extensões de suas armas. Não queria ter escrito aquilo, mas seu coração mandou, seus olhos vazavam lágrimas tímidas ao pensar em todos que já havia perdido com aquela violência.
Tão comum quanto um homem descendo a rua e comendo um naco de pão eram seus irmãos de fé, compatriotas, que puxavam a derradeira chave e explodiam em centenas de pedaços não só o próprio corpo, mas o de quem estivesse por perto. Defronte a um grande supermercado ele ouviu e viu a explosão. Um susto grande e depois aquilo que imaginava ser o inferno. 
Primeiro a fumaça de várias cores, amarela, azul e vermelha. Como cobras encantadas elas rodovoluteavam na direção do céu, envolvendo as colunas entortadas e os vidros estilhaçados ao som dos gritos de socorro de dezenas de pessoas. Pequenas outras explosões, talvez de artigos inflamáveis, espocavam dentro da loja e o ranger de dentes e o pranto lavava a rua de sangue escuro, um riacho viscoso no qual os sobreviventes escorregavam. Pedaços, era o que via triste o homem ainda com migalhas de pão na barba muito preta. Num gesto inconsciente, pôs-se de joelhos no chão e começou a orar. Não conseguia, porém, tirar os olhos de uma menina de pouco mais de três anos, enegrecida pela fuligem, de boca aberta e olhos inchados de um choro fino. Se aproximar era impossível, suas pernas não obedeciam, seu corpo doía como se castigado por mil chibatadas. Olhou suas mãos, sangravam, olhou suas pernas, sangravam. E desmaiou. 
***
Levado ao hospital, apinhado de desvalidos de guerra, quis ver o médico. Na presença do doutor que fazia plantão há quatro dias ininterruptos, o homem moreno e traços finos e belos fez seu relato, tudo que viu nos poucos minutos antes de desmaiar, de cair de joelhos e desfalecer. O médico, compadecido e paciente, disse segurando as mãos do homem: 

- Impossível você ter visto isso, irmão. Você foi o primeiro a ser resgatado, com os olhos furados pelos estilhaços da explosão. Sinto muito... 

E pela primeira vez depois de muitos anos, o homem chorou.
Paz à Palestina, paz a Israel. Que o cessar-fogo seja eterno.