O escultor do verbo

Já comentei aqui da obra de João Gilberto Noll, escritor do sul que ficou conhecido como um ourives do verbo, por seu trabalho esmerado com as palavras. No comentário disse que, apesar de bem escrito, o livro "O quieto animal da esquina" não me convenceu como história. Tenho outros livros do cara na estante, mas não me animei a ler. Agora, no recesso de Festas, mergulhei no seu novo livro, "Acenos e Afagos" (Record, p. 208) e eis que me peguei numa gostosa surpresa: o livro é deliciosamente inverossímil e muito bem escrito. Toda essa arquitetura resultou em uma obra no mínimo original, na qual realidade e fantasia se mesclam eroticamente, sem culpas, limites ou preconceitos, na exploração delicada ou violenta do corpo. A história do narrador, um homem com neuroses libidinosas, tem início com sua mais marcante experiência sexual quando criança, nos corredores de um consultório dentário. Daí em diante, suas aventuras sexuais se diversificam dentro de submarinos alemães, em banheiros sujos e fedorentos, com homens e mulheres, numa busca insana e obsessiva por satisfazer seu desejo que se mostra infinito.
O texto poético serpeiteia com graça pelas páginas, um único texto sem interrupção, sem abertura de parágrafo ou capítulo ou título, uma só corrente de palavras ligadas com cuidado de relojoeiro, como engrenagens nas quais tudo funciona de forma síncrona, mas não enfadonha. A história é montada sobre um terreno pantanoso, no qual se entra na primeira página e se sai na última até o pescoço de desejos, aspirações, tesão. Uma das maiores dificuldades foi fechar o livro, pois a vontade de saber onde aquele narrador quer nos levar pelas mãos é indescritível. Apesar da falta de divisões no livro, fica bem claro em quase todas as duzentas e poucas páginas pelo que passa aquele narrador meio sem nome, meio sem local, desencaixado do mundo como os personagens de Noll costumam se apresentar. Sua infância, descobertas adolescentes em seminário, a relação fatídica com o "engenheiro", as viradas em sua vida erotizada às últimas conseqüências e a sua 'transmutação', tudo isso apresentado de forma bela, em linguagem poética. Uma epopéia da libido, que vale muito a pena.