Cabeça virada (nonsense)

Naquele dia acordei estranho, mais estranho que o de costume. O que antes se resumia às remelas secas e ao travesseiro babado foi além de qualquer expectativa. Dores em todo o corpo me atormentaram durante aquela noite e diversas vezes tive vontade de me levantar, mas não consegui pelo sono mais pesado que o habitual. Não havia comido nada de estranho, nem bebido, muito menos ingerido qualquer substância que pudesse me transformar daquela maneira, que no início me pareceu engraçada até eu ter que dar os primeiro passos. Com toda a dificuldade que tive, não sei como não enlouqueci nos primeiros minutos da manhã, deve ter sido a lembrança de uma frase de um filme ou de um livro ou de uma música, não sei: o ser humano é um animal que se acostuma. 

Acho que por isso só achei estranho acordar e ver minha própria bunda ao olhar para baixo quando precisei caminhar até o banheiro que fica, inclusive, dentro do meu quarto. Cada dois passos tropeçava nas roupas que havia deixado no chão. Pensei que pudesse lavar meu rosto, mas meu poder de contorcionismo era limitado, então entrei direto no banho... a água batia nas minhas costas e entrava na minha boca, então virei para ensaboar o peito, o que ocorreu de forma tranqüila (o resto do meu corpo estava normal, braços, pernas, todos virados para o lado que até então eu acreditava ser a minha parte da frente). Mijar foi terrível, sentado, pois não tinha visão para mirar a água do vaso. 

Não sentia dor, mas um incômodo em ver tudo sendo deixado para trás. Me vestir foi uma verdadeira ginástica, coloquei a calça deitado com a cara no colchão e quase me sufoquei, a camisa foi abotoada olhando por cima dos ombros defronte a um espelho e chegar até a porta me custou mais tempo do que todo o resto: três topadas com a parede, uma com o batente da porta, dois com cadeiras e um com a porta de saída que fez um estrondo de acordar a vizinhança. Era muito cedo, 6 da manhã, e nesse momento dei graças a Deus pelo meu prédio não ter porteiro, apesar da dificuldade de achar o botão para abrir a porta principal do prédio. 

Ninguém na rua, meu bairro era muito tranqüilo, o que me dava a oportunidade de chegar ao médico sem alarde. Havia um hospital a dois quarteirões de casa e não comento como foi o trajeto, mas digo que demorei 50 minutos para percorrer essa distância. Algumas pessoas no meio do caminho correram de mim, outras desmaiaram de susto e apenas uma criança riu, divertida. Dei um tchauzinho para ela, agradecido por ela não gritar nem cair para o lado sem que eu pudesse socorrê-la. 

Entrei no hospital e me dirigi ao balcão. A moça do outro lado pediu, de cabeça baixa, meu nome, a carteirinha do convênio médico e perguntou o que eu estava sentindo. Nesse momento levantou a cabeça e deve ter sido a última coisa que viu naquela manhã. Desmaiada, foi socorrida por um segurança, que tremia na minha presença. Para evitar mais dissabores, ele me encaminhou pessoalmente à sala de um médico, que me recebeu com cautela, virando a cadeira de um lado para o outro para tentar acomodar meu corpo, sem entender a aberração que eu me tornara. Até que, finalmente, montado no assento como em um cavalo, expliquei o inexplicável: 


—  Acordei assim.

Mas não tem dor alguma? Que inédito.

Senti dor apenas durante a noite. Agora, sem dor. Sem sensação nenhuma, apenas o incômodo de olhar o tempo todo para trás.
Que inédito. Teremos que tirar alguns raios-X, fazer uns exames para ver o que ocorreu para você acordar assim.
E sorria. Não entendia o porquê daquele sorriso encantado pela feiúra da minha cabeça deslocada, como se tivesse sido arrancada e colada na contramão. Esperava começar a vomitar a qualquer momento, caso um padre entrasse por aquela porta, mas não foi um padre. Antes que eu desse conta, um punhado de doutores de diversas especialidades se acotovelavam sobre mim, perguntando tudo que podiam e até o que não podiam, me deixando nauseado (seria fácil vomitar, porém a golfada escorreria pelas minhas costas e entraria pela minha cueca... por isso respirei fundo) e uma máquina de raio-X foi instalada naquela sala. Eu precisava avisar na empresa que chegaria mais tarde, ou não chegaria naquele dia por problemas de saúde. Não que fosse um problema, não tinha dor, mas não podia dizer isso ao meu chefe que mandaria um motorista me buscar, tivesse eu pescoço virado ou a cabeça colada nas bolas. Na confusão de sair de casa, benzadeus, havia esquecido o celular. Aliás, nem saberia usá-lo naquelas condições. 
Hoje vivo uma vida quase normal, exceto pela ombreira-retrovisor que tive que inventar e que é o hit do momento entre as tribos modernosas ráipadas que me adotaram como seu símbolo, me chamando de homem-vintage. Demorei a entender o conceito, mas achei engraçado essa coisa do olhar para trás. Já fui a programas de entretenimento no qual, com muito suspense, eles me anunciavam como o "homem-virado", e todo mundo esperava uma travesti. Os médicos do primeiro hospital que fui fizeram todos os exames, fui para o exterior e nenhuma explicação foi encontrada para minha diferença. Casei com uma mulher que sempre briga comigo, dizendo que eu não olho pra ela, mas é força do hábito olhar o mundo de outro jeito. Nossos filhos são lindos, os três olhando sempre adiante, diferente do pai deles. 

Mesmo acostumado com meu destino, acordo todos os dias com a esperança de ver novamente o mundo de frente.