Sem choro

Na curta viagem que fiz a Belo Horizonte, devorei Leite Derramado, o último livro do mestre Chico Buarque. Talvez ainda não mestre da escrita, mas um mestre das palavras de qualquer forma. Temos um Chico bem diferente dos últimos livros, desde do engasgado Estorvo (1991), passando pelo "apagado" Benjamim (1995) e pelo celebrado Budapeste (2003 e que, em 2009, foi lançado em filme). Sem os experimentalismos dos livros anteriores e, aparentemente, com uma segurança maior na escrita e a conhecida ironia comedida, Chico traz à tona em Leite Derramado a questão da memória e da fantasia. Duzentos anos de um Brasil glamuroso e esquecido é retradado em toda a obra, num grande jogo literário de repetições, no qual Eulálio Assumpção conta sua história de luxo e decadência em seu leito de morte. Aos 100 anos, sofre em um hospital e sua única e verdadeira companhia é a perda da lucidez. Das altas rodas da sociedade carioca até os cafundós enfavelados, Chico destranca diversos fantasmas quatrocentões e revolve um passado que nos pertence. Lançamento festejado e comentado em todas as rodas, Leite Derramado (como disse a amiga Nanete, com a qual concordo, uma imagem forte e feliz do livro) vale a pena.