A festa

Me lembro apenas dos raios de sol se esgueirando pelas pequenas imperfeições da porta mal colocada quando acordei amarrado frouxamente nos pés e nas mãos. Tamanha era minha fome que não tinha forças para me desvencilhar daqueles cordões encardidos que eles me colocaram no pulso e no tornozelo. Não vi seus rostos, era noite e usavam algo estranho no rosto, como uma pintura que os deixava com aspecto engraçado e eu riria se não estivesse tão apavorado com a violência: entra no carro, rápido, ouvia uma voz rouca e sentia algo pontiagudo nas minhas costas, entra rapaz, entra, era o que repetiam. Deles apenas ouvi que se eu precisasse de algo, era só puxar uma corda ao lado de mim com a boca que logo alguém viria. Puxei diversas vezes e tentei arrancar algo daquelas pessoas, mas nada deu certo. O silêncio era interrompido vez ou outra por tiros, não sabia onde eu estava, apenas tiros e crianças gritando e mulheres dando vozes de comando para as crianças, algo parecido com venha para dentro. Não entendia o idioma direito, havia três meses que estava ali. Apesar da minha aparência de local, não demorou muito para perceberem que na verdade eu não passava de um estrangeiro e, pior, um repórter estrangeiro mandando mensagens e imagens para o mundo do que acontecia naquelas paragens.
Quando acordei naquela manhã, eles festejavam. Não entendia tanta festa, afinal eu havia estudado tanto sobre o país e não me dizia nada aquele dia. Eu já estava em cárcere privado há uns dias, mas ninguém dava falta de mim, a reportagem era encomendada e eu fui sozinho para lá. Os gritos eram cada vez mais intensos e os tiros também. Eles dominavam tudo por ali, tudo era deles. Eu sempre ficava por dias sem dar notícias ao meu editor e ele bem sabia que não havia perigo de acontecer um sequestro ou coisa que o valha, porém sentia que algo estava estranho, como se eu estivesse na frente de um mar e ele estivesse se agitando cada vez mais até formar uma onda e me engolir, e engolir toda a costa, e os continentes e cobrir tudo, devastador. E a minha confirmação de que isso estava acontecendo foram os gritos, a festa e eles entrarem falando meu idioma, rindo e cantando naquele quartinho que cheirava mofo e areia.

"Agora começou" era o que eu ouvia daqueles homens, "não tem mais volta". E celebravam, cantando em seu idioma. Talvez em todo o mundo deles havia comemoração, talvez significasse que eu não tinha motivos para celebrar também. Pensei em meus irmãos. E na minha mãe. E em meu pai, que Deus o tenha. Tiraram meu capuz, fazia um calor imenso e o mormaço era visível entre o casario pobre que dava para a única janela daquele cubículo. Era um dia festivo, sim, mas eu não me lembrava. 

"Os dois foram ao chão, os dois". 
Eu não entendia, não fazia sentido. Um golpe militar, mas era tão poderoso o govenante dali que eu não podia acreditar. E se falavam em dois, certo que não era ele. Eu perguntava o que havia, pedia por água e comida, ele riam jogando um pouco de água nas minhas pernas e dizendo "logo traremos, depois que a festa acabar". Mas que festa, meu senhor, que festa. Por que me mantêm aqui nesse lugar, que fiz a vocês? Sabia de sua xenofobia e que não pensariam uma única vez em me degolar e mostrar em praça pública, como sempre foi feito naquele lugar. Por isso não forcei barra alguma. Num momento, um deles me disse, olhando para os meus olhos e pude reconhecer o motorista de táxi que sempre foi tão gentil comigo: 
"Senhor, vamos mostrar o motivo da nossa festa. E depois o senhor vai ser solto."

E trouxeram uma velha televisão. Quando ligaram, reconheci o âncora do jornal diário com um leve sorriso no rosto, dando uma notícia confusa. Gêmeos. Avião. Torres. Daí entendi que a festa apenas havia começado... 

[A todos os mortos de 11 de setembro de 2001 e a todos aqueles atingidos em oito anos de tristeza. Paz, sempre]
*Imagens: TV UOL