Desaforo I

Quando dei por mim, o espelho já estava estilhaçado. Os nós de meus dedos eram porcos-espinhos de plástico e vidro e nem eu sabia que tinha essa força, furei o armarinho vagabundo acertando um frasco de mertiolate que ardeu quando estourou entre o médio e o anular. Nunca havia esmurrado a cara de ninguém, resolvi fazê-lo na minha própria, no espelho, pois não aguentei meus olhos cínicos e um sorrisinho sarcástico no canto da boca como se me dissesse "você é um bosta". Depois de mijar e sentir o cheiro rançoso de cerveja velha subir nos vapores úricos, resolvi me encarar como nunca havia feito. Foram alguns segundos ou algumas horas, sei que consegui chegar bem perto do fundo de poço que são meus olhos. Lamacentos, lodosos, imundos. Não aguentei a testa franzida e a sobrancelha altinha fazendo firulas, trêmula como se gargalhasse do seu dono. "Idiota" era o que eu ouvia do fundo dos meus olhos. Mas o que me fez socar meu próprio nariz no espelho não foi a minha zombaria. Foi pelo que eu sabia estar além de meus olhos...