Diálogos V

(Pieter Brügel, o velho (†1569): A Cocanha [Schlaraffenland] - 1567)
A cidade cinza brilha com o sol de verão em dias invernais, comum na desgovernada São Paulo de poluição e beleza incomum. Seco, tempo seco. Os olhos lacrimejam, buscando alento no ar espesso, de poeira que quase se consegue segurá-la. Talvez fosse a única maneira de impedir que ela grudasse no corpo, nas roupas estendidas em varais cheios, pois em tempo bom se lava roupa, se leva cachorro pra passear e se vai ao parque. Isso quando não somos enredados por uma senhora maldosa, maliciosa e cheia de artimanhas chamada preguiça.

- Vou tirar um cochilo, que você acha?
- Você só dorme, viu...

E a preguiça é manhosa. Pega a gente de surpresa, sem que esperemos, sem termos defesa. Traiçoeira, faz de um simples cochilo um arauto do pecado capital mais malemolente. Senhora que imagino sempre corpulenta, de olhos lascivos, talvez até mais que a fogosa luxúria, pois sua conquista é certeira, não depende do desejo, muito pelo contrário, farta-se em troça pela falta dele.

- Acho que hoje não vou fazer nada. Ou melhor, vou fazer nada.
- Eita preguiça danada, hein?
- Xiiiiu. Não fale alto que ela chega.
- Ela quem, homem de Deus?
- A preguiça...

Que preguiça gostosa, dizem uns. E ela se penteia lentamente, seus cabelos desgrenhados pela falta de vontade de penteá-los, mas se arruma aos poucos e fica bonita para cada vez mais atrair seguidores. Aquela sesta após o almoço, lá está de braços abertos a indolente senhora, o despertador que toca e toca e a cama que não nos deixa levantar, se perceber sentirá os dedos da espertalhona pressionando seus olhos para que você fique mais um pouquinho e perca a hora do trabalho. A gula é combatida com unhas, dentes e dietas, a luxúria é coibida pela moral e pelos bons costumes (das senhores católicas da Mooca, principalmente), o ódio se espalha como o vento sobre o mundo, mas a preguiça, parece um pecadinho bobo. Mas cuidado... pois ela quer ver a discórdia, se diverte conosco, seus súditos:

- Vamos desligar o telefone, você precisa descansar. Por que não vai dormir, amor?
- Eu vou, mas tô com preguiça de dormir. (risos)
- Com preguiça, né? Mas não tem preguiça de dormir quando eu estou aí
- Ai amor...
- Você vive querendo dormir quando eu tô aí!
- É que eu gosto de dormir com você... é tão gostoso.
- (Risos) Boa saída... agora vá dormir!
- Tá bom, te amo.

No canto daquela sala, esparramada no sofá, gargalha fanfarrona a dona preguiça. Com ela, realmente, ninguém pode.