Diálogos VI - Pena



O olhar perde-se no azul longínquo, acha bonito o tapete branco que se estende sob sue pés. Da poltrona 15A daquele vôo diurno, um assento sobre a asa que atrapalha sua visão do solo, esse olhar perde-se numa saudade do que deixou a pouco, numa ponta, e numa saudade que será saciada na outra ponta.
De repente vê-se uma pequena mão agarrar-se à janela, no lado de fora. O coração do rapaz daquela poltrona dispara, ele leva às mãos à boca, segura o grito de susto. Cabelos ao vento, sorriso reluzente, uma criança com sua palidez que lembra porcelana. 
— Olá.
Ele conseguia entender o que o menino dizia. Estava apavorado. Na poltrona 15C um senhor cochilava, na 15B, poltrona do meio, não havia ninguém. Os comissários desfilavam apressados, ele não tinha coragem de falar nada. O menino falava, ele lhe lia os lábios.
— Não chame ninguém, não adianta. Eles não vão me ver. Converse comigo, estou muito sozinho e tenho algo pra dizer.
— Quem é você? — perguntou alto e, com olhos arregalados, olhou em volta. O senhor resfolegava e ele agradecia por ninguém ter ouvido, pensariam que ele havia enlouquecido.
— Sou um anjo para você. Para outros posso ser um espírito, um erê... mas para você, sou um anjo.
— Mas eu não acredito...
— Ah, não acredita? Então vou embora...
— Não é isso, espere. Devo estar dormindo, não é possível...
— Olha só, vou lhe fazer uma pergunta e você deve ouvir com atenção. Você quer viver quanto tempo ainda? Vinte, trinta anos?
— Pode ser, não sei...
— Só escute então. E olhe aquela nuvem enquanto eu digo, bem devagar o que você deve fazer para viver o tanto que deseja.
— Tudo bem... – o pavor dera lugar a um sentimento engraçado de felicidade e carinho por aquele rosto infantil, por aquelas mãozinhas agarradas nas beiradas das janelas. O azul ainda era vivo, mas havia uma massa estranha, acinzentada, sobre a cidade que se aproximava.
— Sorria – disse o menino – sorria a todos, sem pensar pra quem. Sinta o sorriso tomar conta de seu rosto, de suas mãos, pés, traseiro, para o pobre, para o rico, para a criança e muito para os velhinhos, muitas vezes solitários.
Então o rapaz sorriu, com olhos marejados e lembrou-se que a última vez que sorria havia sido há quase dois dias.
— Agora preciso ir. O avião já começou a pousar. Lembre-se, sorria.
— Espere, queria pedir uma coisa...
O menino sorriu maroto e disse:
— Sou anjo da guarda, não sou gênio da lâmpada. Sorria, hein!
E despregou-se da janela, desfraldando um manto azulado que se assemelhava a asas. Virou-se ainda uma última vez e com os dedinhos indicadores ao lado da boca, fez como se puxasse seus lábios num sorriso que foi de um brilho tão intenso que se misturou aos raios solares. Então, o rapaz por fim sorriu.


(Imagem: Engel im Kindergarten, 1939 - Paul Klee, pintor suíço)