O matador de tempo I

Tempo, tempo, mano velho, falta um pouco ainda eu sei...

Pato Fu

Sou matador de tempo profissional, confesso e irredutível. Por muitos anos da minha vida procurei algo realmente interessante para fazer, porém não obtive muito sucesso, em parte pela minha falta de tato para situações realistas e também por não me encaixar no que a sociedade considera como padrão de trabalhador (ainda mais onde vivo, na dita "locomotiva" brasileira, São Paulo). Por isso, torne-me um matador de tempo, após passar por algumas profissões pouco convencionais. Por exemplo, aos quinze anos, comecei a engraxar sapatos no centro da cidade. Profissão para gente de pouca renda, eu sei, mas meu sonho era ser engraxate desde novo. Meu pai é um famoso advogado, minha mãe psicóloga de renome, meu irmão mais velho, cirurgião plástico de estrelas, então posso dizer que minha condição financeira me permitiria viajar o mundo ao menos uma vez ao ano. Porém, ao contrário de toda a mordomia que o dinheiro poderia me oferecer, escolhi ser eu mesmo, seja lá o que isso fosse. E esse desejo surgiu quando certa vez fui ao escritório com meu pai, nas mediações da rua Boa Vista, e lá vi o primeiro engraxate da minha vida: menino de rosto sardento, queimado de sol, cabelos loiros, mas carapinha, olhos muito grandes e verdes. Sujo de vários tipos de graxa, me inspirou uma liberdade sem igual. Seu jeito malandro de falar ô dotô vai uma graxa aí? me fez querer ser engraxate. Então, saía do colégio nas mediações da avenida Paulista, de uniforme bem bonitinho, driblava o motorista da família dizendo que faria um trabalho na casa de um coleguinha que morava na rua Peixoto Gomide, por isso poderia ir a pé. Ia mesmo até a casa do coleguinha, que guardava minha roupa de guerra e meus equipamentos: uma bermuda jeans suja, uma camiseta alargada e rasgada nas costas e minha caixa de engraxate, que eu comprara por módicos R$ 80,00 de um guri que perambulava na rua Augusta. Pegava um ônibus e descia em frente ao Theatro Municipal, atravessava o viaduto do Chá e tomava meu lugar entre os transeuntes do Largo do Café. Não durou muito tempo essa vida feliz, pois numa bela quarta-feira, estava eu descendo a rua da Quitanda, quando o inesperado me pegou em cheio. Minha mãe saía de um restaurante estranho com um homem tão estranho quanto o restaurante... (continua)