Adônis morreu I

Telefone, duas da manhã. Nesse horário, nada de bom poderia ser.

- Alô, Paulo? Aqui é Miriam...

Miriam era mulher de Adônis, um dos sócios da empresa. Sua voz chorosa me gelou a espinha.

- Adônis acabou de falecer.

O baque, apesar de esperado, sempre nos tira dos eixos. Como Clara, minha mulher, assustou-se com o telefone, depois e eu repetir a frase "Adônis acabou de falecer". Automático, repeti o que Miriam havia me dito, num misto de aparvalhamento e apavoramento. Como precisava acordar muito cedo, poupei Clara do velório, pedindo para ela rumar ao cemitério depois que ligasse para dar maiores informações.

"Ele estava há muito tempo daquele jeito, Paulo" dizia Miriam, com olhos inchados, mas apática. "Todos tentamos de tudo para que ele se recuperasse, mas ele se foi. Como se tivesse virado as costas para o mundo dos vivos" e tornava a verter lágrimas, porém sem escândalo. Adônis estava plácido, aliás isso é sempre um grande clichê aos mortos. Aquela cara de alívio, há muito não se via em Adônis. Há muito não se via Adônis, afastado há tanto do trabalho para cuidar da saúde.

Não havia mais do que 20 pessoas no velório de Adônis. Homem reservado, tinha poucos amigos e menos parentes ainda. Um filho de 15 anos, na combinação terno-gravata-tênis que o deixava com um ar um tanto ridículo, e uma filha de 18 que parecia bem mais velha nos trajes de luto. Seu cabelo caía sobre os olhos, muito pretos, e seus olhos estavam pintados de forma extravagante. Parecia uma dessas "emos". A irmã mais nova de Adônis, perua de primeira, junto à esposa dele, formavam sua família, todos ao lado do caixão. Alguns funcionários, empregados da família, amigos e nós, os sócios da APL Consultoria: Augusto, Lélio, Chico e eu. Como não trabalharíamos no dia seguinte, combinamos um truquinho depois do velório para lembrar os velhos tempos no qual Adônis gritava enlouquecido quando pegava um "zap" e podia ir à forra nos pontos perdidos. Sorríamos uns aos outros, mas não como sinal de condolência e conforto, mas sim como código para marcar o tal jogo.

"Daqui uma hora, na casa do Lélio" disse Augusto, ao passar por mim e me cumprimentar com rosto sério, mas olhar bonachão.
"Ôuquei, estarei lá" respondi, sentindo uma ponta de culpa.

"Preciso falar contigo" sussurrou Miriam, que vinha logo atrás de Augusto, e me levou para fora do velório.

"Não quero parecer mesquinha numa hora dessas, mas a morte de Adônis nos pegou de surpresa. Gastamos muito em tratamentos e mais tratamentos que, apesar de levados à risca, pouco adiantaram para salvar meu marido. Como sócio da empresa, talvez..."

"Olhe Miriam" disse eu, com voz rouca de quem se apruma para dizer verdades doloridas. "Adônis, antes de morrer, vendeu quase todas as suas quotas na empresa e apenas participava com uma quantidade irrisória, que pouco vai render a vocês a curto prazo. Disse que precisava do dinheiro, que me explicaria quando voltasse. Agora com a morte dele, se esse dinheiro não está em lugar algum, creio que não há mais nada que a empresa possa fazer..."

Os olhos de Miriam faiscaram de ódio. Li seus pensamentos naqueles segundos: crápulas, miseráveis, meu marido fez tanto por aquele pardieiro e eles não se prestam a ajudar a família de quem carregou esses chupins nas costas.

"Tudo bem, Paulo. Mas acredito que a firma deva fazer algo em prol da família do sócio honorário".

"Podemos conversar sobre isso depois, Miriam. Agora vou me encontrar com os outros sócios para resolvermos algumas coisas pendentes e que devem ser resolvidas agora, com a morte do seu marido. Nos vemos no enterro".

E rumei para a casa de Lélio, que já colocava a cerveja na mesa e distribuía os petiscos nos potinhos para começarmos a jogatina. O enterro seria às 14h00, no jazigo da família no cemitério da Consolação (sem dinheiro, mas com um bom lugar para cair morto), bem perto da casa do anfitrião, que é ali na Bela Cintra. Enquanto isso, no caminho até a casa do sócio-parceiro de truco, lembrei-me um pouco da vida de Adônis.

(Continua)