O matador de tempo III

O tempo não existe. Só existe o passar do tempo.
Millôr Fernandes, A Bíblia do Caos.

Mesmo sendo glorioso esse dia, sabia que dali para frente tudo mudaria na minha vida. O que para mim foi uma simples aventura, para minha mãe foi um desafio de sua intimidade, uma invasão da imagem da mãe escrupulosa e correta para talvez sua verdadeira imagem. Nunca fiquei sabendo realmente quem era o tal Júlio, não me interessava na verdade. O que sempre me interessou foi saber o que o futuro me reservava, o que seria de mim se não quisesse ser o que meus pais desejavam que eu fosse, se não fosse bem-sucedido eles me amariam? e todas essas dúvidas que pairam em cabeças juvenis. Desse dia em diante minha mãe começou a me perseguir e seu comportamento com meu pai melhorara muito: ela começou a cozinhar pessoalmente para ele, servia, chamava de amor o tempo todo, beirando à melação. E comigo era "Álvaro, faça isso", "Álvaro, não faça aquilo". Reduziu minha mesada, com a desculpa de que um menino de 15 anos não precisava de tanto dinheiro. Também alterou meus horários de escola e todas as atividades que eu já me acostumara, me fazendo desistir de algumas que gostava, como pintura e karatê. Aos 16 para 17 anos fez torcida para que eu entrasse no exército, dizia que "perderia o desleixo com boa disciplina militar". Graças aos céus herdei dela o pé chato, que me fez escapar por um triz das garras verdes dos recos. Até que um belo dia, na mesa de jantar:

- Álvaro precisa entrar no cursinho. - disse ela, mordiscando uma rodela de batata soutê.
- Mas a escola já não lhe deu base para isso, Ofélia - perguntou meu pai, cortando seu pedaço de pato.
- Pode ter dado, mas Álvaro é um menino que precisa de reforço, você sabe disso.

Meu pai não sabia de nada. Como bom workaholic nunca havia olhado um boletim meu, que exibiam glamurosas notas 9 e 10 em quase todas as matérias. Tentei protestar, mas...

- Álvaro! Se sua mãe disse que você precisa, ninguém melhor do que ela pra julgar isso. Começa o cursinho no próximo semestre.

Num muxoxo, ainda tentei me salvar, porém...

- Filhinho, não precisa ficar chateado. Você já vai acabar a escola, fazendo seis meses de cursinho junto com a escola você passara fácil na USP. Já sabe o que vai querer estudar?

Meu sangue subiu, meu rosto sardento enrubesceu e algo me dizia que eu deveria contrariar a tudo e a todos. Respirei fundo e, contra essa idéia absurda, deveria fazer algo para ganhar pontos com meu pai. Lembrei da negociata com a minha mãe, lembre de Júlio e seu terno ensebado e sua cara de advogado porta-de-cadeia. Mamãe tinha queda por advogados.

- Vou fazer direito, na São Francisco, como meu pai. Serei advogado.
- Ótima escolha meu filho - disse meu pai, envaidecido - escolheu a profissão certa. Logo seu pai sai de cena e entra você para coroar o direito brasileiro com a terceira geração de Vasconcelos. Isso merece uma comemoração.

Minha mãe, enfurecida, percebeu minha jogada. Não sabia onde esconder sua ira, então riu dissimulada:

- Vai agüentar o curso, meu filho? São muitas leituras, muitos deveres...
- Ofélia, deixa de ser pessimista. Álvaro é um garoto inteligente, vai se sair bem. Com certeza não dará trabalho como o Alberto, que se formou quase depois de dez anos do primeiro vestibular. - disse meu pai, quase mais ofendido do que eu.
- Alberto se esforçou para ser o melhor de sua turma, ficou mais tempo por vontade própria. - disse impávida minha mãe.

Parêntese: meu irmão demorou dez anos para ser formar por um simples motivo: a maconha e a bebida retardaram toda sua capacidade de alcance do mundo real. Trocando em miúdos, era um porra-louca, mas era um cara muito legal. Hoje em dia é geração saúde, engomado e chato pra diabo.

- Está bem, não falaremos mais nisso. E agora vamos abrir um champanhe para comemorar.

E brindamos, felizes. Na verdade, meu pai brindou feliz. Minha mãe gostaria realmente de comer meu fígado como faz com os foie gras tirânicos que adora degustar com suas amigas, um bando de velhas cheirando a naftalina. Eu queria sair daquela casa onde eu era alimentado como um ganso que logo, logo perderia seu fígado pelo bem de uma senhora cheirando naftalina se continuasse sendo perseguido daquela maneira. Agora eu não teria tempo para entregar ao ócio criativo, à vagabundagem coletiva e essas coisas que todo adolescente saudável gosta e deveria fazer. Mas o cursinho me ajudou bastante em vários aspectos, inclusive a descobrir que ser advogado não era de modo algum minha vocação. Essa descoberta foi a chave do meu futuro...

(continua)