Não é pouco o tempo que temos, mas é muito o tempo que não utilizamos.
Sêneca, filósofo romano
Já havia comentado que minha família tem recursos, mas em tempos de recessão, tudo vai meio por água abaixo quando a questão é grana. Como toda a boa família de classe média alta, perdemos um pouco do poder aquisitivo, mas nem tanto. Por isso não pude fazer um cursinho top de linha como a minha mãe desejou, mas um mais acessível, e não menos capaz que os outros. Na esquina da rua Matias Aires com a Frei Caneca estava meu refúgio das loucuras do lar: o cursinho. Ao lado do cursinho, dois bares, uma padaria, mais bares na próxima esquina, restaurantes, cinema, teatro. Cursinho? Ah, claro mãe, o cursinho está ótimo, hoje tivemos uma aula fantástica de literatura, ontem tivemos muitas revisões de matemática. Estou atrasado, conversamos outra hora. Essa era a minha saída para o café-da-manhã com dona Ofélia, como chamávamos os interrogatórios matinais da mamá.
Antes de dizer qual foi o rumo que minha carreira tomou, vou contar como a idéia surgiu: estava eu, tomando uma cerveja e matando uma aula de física (que sempre me deu nos nervos), discutindo o último filme do Almodóvar (éramos pré-adultos antenados, minha turma), quando de repente um rapaz grita do outro lado da rua "vá pentear macaco". Meus olhos brilharam e me calei, os outros continuaram a acalorada discussão enquanto eu devaneava naquele xingamento popular. Num momento, alguém vira para mim e pergunta:
- Aquela cena que o Caetano tá cantando à beira da piscina, você não achou muito kitsch, Álvaro?
- Eu acho que vou ser biólogo?
- Que?!?
E todos os olhos se voltaram para meus lábios, pedindo que pronunciasse aquelas palavras mágicas "acho que vou ser...". Ninguém da turma sabia ao certo o que fazer. A Paulinha queria ser dentista, mas curtia muito música e ciências sociais. O Júnior era das exatas, mas se amarrava em filosofia. A Nana, tarada em literatura, queria mais era fazer teatro ou ser fisioterapeuta. E eu decidi, naquele momento, que minha vida seria pentear macaco. Cuidar de nossos ancestrais distantes, dar-lhes água, comida e, quiçá, penteá-los de verdade. Meus olhos brilhavam cada vez que pensava neles, adquiri uma fixação por qualquer imagem simiesca e levei adiante meu sonho.
Porém, não passei no vestibular. Nunca passei em nenhum vestibular, para decepção dos meus pais, da família, dos amigos. Sempre tive pavor de provas, elas me deixavam enlouquecido. Tinha ciência de que as matérias estavam na minha cabeça, os verbos, as matrizes, as espécies, os raios, as questões geopolíticas, as datas históricas e tudo mais. Na hora da prova, dava branco, preto, amarelo, menos as respostas das malditas provas. Tentei concurso público e nada. Mas aprendia cada vez mais. Não repeti o cursinho, tenho saudades daquela época. Trabalhei um tempo no zoológico, onde pude pentear macaco, dar comida pra elefante, brincar com jaguatirica e até correr de leão. Também fiz teatro amador, cuidei de velhinhos, militei no MST, fui guarda noturno e apontador de jogo de bicho. Desaprovado pelos meus pais, abandonado pelos amigos, resolvi fazer o que mais me agradava: matar tempo. E hoje estou vivo disso, ganho para matar o tempo alheio, em especial os empresários workaholics que se culpam se perder o mínimo de tempo sem fazer nada. Descobri que são voyeurs de desocupados, que têm satisfação em ver o ócio alheio. Então eles me pagam e eu nada faço na frente deles. É difícil, pois são exigentes. Qualquer movimento que demande um esforço maior já reclamam, dizem que não estou matando o tempo, que meu tempo é deles e eles querem esse tempo de ócio enquanto trabalham feito loucos para sustentar as esposas peruas e os filhos incoseqüentes. Não é das profissões mais difíceis que tive, mas é a que até agora me consome mais energia. Pois quer saber? Fazer nada cansa muito...
FIM