Adônis morreu V

"Alô Paulo, onde você está" - perguntou Clara, desconfiada.

"Shhhh, caralho, é minha mulher" - sussurrei para os parceiros de jogatina e continuei:

"Oi amor, estou na empresa. Reunião para saber o que fazer depois da morte do Adônis. Que você quer?"

", o que eu quero? Saber que horas e onde será o enterro."

"Ah, claro. Peraí".

Estávamos no meio de uma partida decisiva, precisava ficar de olho em meus adversários, que tentavam a todo momento roubar. Respirei fundo e joguei uma carta, mas, antes que Lélio gritasse "truco", botei a mão em sua boca e disse ao celular:

"Clara, será no cemitério da Consolação, às 14h00. Não tenha pressa, ainda são 10h30 da manhã."

"Está bem, está bem. Vou até a casa da minha mãe e depois sigo para lá."

"Ouquêi, um beijo."

"Outro".

Quando apertei o botão de desligar, Lélio berrou "truco" tão alto que acordou uma criança que morava no andar de cima. Rimos muito do Lélio se desculpando com a mãe do bebê no interfone e continuamos a partida. Eu estava perdendo, óbvio, pois não conseguia parar de pensar na vida de Adônis.
São Paulo abriu-se para o casal como se eles já tivessem a chave há muito. Logo Adônis arrumou um emprego num escritório no Paraíso, próximo ao metrô, o que facilitava muito o acesso, já que moravam num antigo prédio na Liberdade. Miriam, que havia acabado o magistério na cidade vizinha ao lugarejo de onde vinham, conseguiu aulas de educação infantil em uma escola próxima ao trabalho. Viviam bem e felizes, apesar da limitação financeira, e os primeiros anos transcorreram com tranqüilidade. Adônis formou-se em Contabilidade com bastante custo em uma faculdade particular pouco conhecida e Miriam, ao mesmo tempo, concluiu seu curso de Pedagogia. Nesta época a insatisfação de Adônis com o trabalho e o sentimento de culpa por não conseguir dar uma vida melhor à sua exigente mulher o fizeram tomar uma decisão: abrir seu próprio negócio. Foi nessa época que nos conhecemos, pois eu cursava Contabilidade também na mesma faculdade, onde também encontramos Augusto e Chico. Lélio juntou-se aos "Destemidos" (era como nos autodenominávamos) meses depois de nossa formatura, quando começou a namorar a irmã de Chico, Laura. Todos munidos de seus diplomas, começamos um trabalho firme de pesquisa, encabeçado por Adônis, para saber o que o mercado estava precisando mais. No exterior, a moda era consultoria, para tudo. Então procuramos saber o que precisávamos para começar a investir nessa área. Estava lançado o embrião da APL Consultoria, nome que surgiu com as nossas iniciais: A de Adônis e Augusto, P de Paulo e Paulo Francisco (o Chico) e L de Lélio, o último destemido. Sem sair de nossos empregos, começamos a prestar pequenos trabalhos de consultoria fiscal (Adônis e eu), marketing (Augusto), logística (Chico) e recursos humanos (Lélio). Às pressas tivemos que alugar um pequeno escritório na rua São Luis, pois a história que começou numa conversa informal na mesa de um bar tomou corpo. Pedimos as contas de nossos empregos e começamos a nos dedicar integralmente à APL. Felizes nós, felizes nossas esposas e namoradas. Miriam engravida logo depois dessa época, quando Adônis começa a dar os primeiros sinais de que não estava muito bem...

(Continua)