Adônis morreu VI

Eram 13h40 no meu relógio. Com o pensamento na história fatídica do falecido, disse:

"Temos que ir para o enterro do Adônis. Já tá quase na hora."

"Ih, Paulão. Agora você quer ir lá ver o cara?" disse Lélio, sempre na pilhérria.

"Claro. A viúva veio falar é comigo. Temos que decidir se vamos ou não ajudar a família" completei, já irritado com as brincadeiras de Lélio.

"O cara jogou tudo pra cima, Paulo. Essa história da doença dele..." disse Augusto, cenho franzido.

"Tem laudo médico, Guto, que prova que ele não tava mesmo bem. Lembra da última vez que o vimos?" disse Chico, preocupado.

"Foi foda" disseram Lélio e Augusto, ao mesmo tempo.

"Então vamos" disse eu, dando uma golada no copo de cerveja e pegando minha carteira. Ao levantar rápido, senti uma tontura e a imagem de Adônis me veio à mente, não o Adônis doente, mas aquele Adônis que sempre tomava a frente de tudo.

Os anos se passaram, nasceu a primeira filha de Adônis, recebida com grande alegria pelo casal. Nessa época, o orgulhoso pai estava no auge da carreira, dono de seu próprio negócio, sócio da empresa de consultoria mais disputada de São Paulo. A vida de Adônis dera um salto, de apartamento modesto e alugado na Liberdade para um belo apê de dois-quartos-suite-vaga-na-garagem comprado na Vila Mariana, perto da nova sede da empresa. Aliás, esse salto foi para todos os sócios, mas Adônis, como o "cabeça" da empresa, também se mostrava o mais bem sucedido, com aplicações, investimentos e afins. E muito trabalho, tanto que recebeu dos outros sócios o título de peão-chefão, pois era mesmo o mais desesperado pela empresa. Depois chegou o segundo filho na casa de Adônis, também recebido com grande festa. Mas Adônis já não era o mesmo homem. Sempre lacônico, sempre apressado. Não participava mais de nossas pequenas reuniões do "Clube dos Destemidos", para um truquinho, ou uma passeada na Augusta à noite. Nem no futebol à noite, programa que Adônis não perdia.

"Paulo, preciso falar contigo" disse-me um dia Adônis, há pouco mais de um ano, no meio do expediente.
"Fale, Adônis. Algum problema da AGL?"

"Não, não. Olha Paulo, confio em você por isso queria te perguntar uma coisa."

"Xi, Adônis..."

Os olhos de Adônis pareciam baços, quase mortos. Suas olheiras evidenciavam uma noite sem dormir, de agonia. A pele macilenta dava um ar de cansaço e arrependimento. Segui para minha sala depois de fazer um gesto para que ele me acompanhasse. Entramos e eu fechei a porta atrás de mim, um pouco assustado.

"Sabe o que é Paulo. É a Miriam. Eu não sei mais o que faço, ela me suga em todos os sentidos." disse Adônis, trêmulo. "Por mais que eu faça, ela não está satisfeita. Temos um apartamento lindo, nossos filhos estão em uma boa escola, ela tem tudo que precisa e que deseja. Quando vim pra São Paulo, prometi que ela teria tudo do bom e do melhor e ela tem isso, Paulo. Você entende minha situação? Entende?"

Olhei para Adônis. Era pouco mais que um farrapo humano o que eu via naquele momento. Desesperado, meu sócio sentou-se finalmente, depois de respirar fundo com a cabeça entre as mãos.

"Olhe bem para mim. Por que acha que estou assim? Não durmo mais pensando em como sustentar os caprichos da minha mulher. Tudo bem, sabemos o quanto ganhamos bem aqui nessa empresa. E o quanto podemos proporcionar às pessoas que amamos. Mas eu não amo Miriam há tempos, nem sei se amei. Mas gosto de tê-la ao meu lado. E amo meus filhos, mas está ficando insuportável."

"Adônis" comecei, sem saber por onde começar. "Fazemos escolhas na vida da gente. E agora você deve fazer..."

"Já fiz." interrompeu-me o marido desiludido. "Já fiz a minha escolha. Venderei minha parte na sociedade e vou fugir. Largarei tudo e vou fazer qualquer coisa da minha vida, mas assim não continuo."

"Calma Adônis" disse, preocupado com aquela decisão. "Calma. Você sempre foi o mais controlado. Vai encontrar uma solução."

"A solução é eu sumir. Me escafeder, compreende? Só que preciso do consentimento dos outros sócios para vender minha parte nessa porra. Não agüento mais..."

"Tem certeza que é só isso, Adônis? Não tem mais nada pra me contar?"

"Não, não tenho" disse Adônis, com voz de quem escondia algo.

Após algumas reuniões, decidimos comprar as quotas de Adônis na sociedade. Seria uma compra rápida, em no máximo seis meses. Os motivos não foram abertos a todos os sócios, apenas Lélio e eu sabíamos da razão alegada por Adônis para a venda. E ele, com olhos ainda baços, mas sorriso no rosto, pediu sigilo sobre aquela venda. E também pediu para continuar trabalhando na empresa, por um salário razoável para se manter até poder sumir, como ele mesmo queria. Feita a alienação das quotas, divididas igualmente entre os sócios restantes, esperamos o sumiço de Adônis.

Foi quando ele adoeceu...

(Continua)