Adônis morreu VII

A fuga de Adônis foi mais eficaz do que podíamos imaginar. Doente logo depois da venda das quotas, não conseguia ir para o trabalho. Resolvia e despachava de lá mesmo, de sua cama. Diferente do seu habitual comportamento, Miriam cuidava dele. Se esmerava em preparar comidas sem muito sal ou gordura, pois além da depressão profunda, Adônis também sofria com a pressão alta, diabetes e febres inexplicáveis. Remédio na hora, banho, ajuda com leitura. Adônis via que sua mulher não era má pessoa, mas seus tormentos iniciais ainda vozeavam alto em sua mente que ela apenas queria manter seu sustento enquanto cuidava de seu marido, como faz reparos em uma máquina.

"Vocês estão atrasados" sussurrou Clara de cara bem fechada. "Já começou".

"Desculpe, tivemos problemas" disse, ainda resfolegante, pois descemos às pressas do prédio do Lélio e seguimos em disparada pela Bela Cintra, Dona Antônia de Queiroz, até subir a Consolação, em direção aos portões do cemitério. O dia estava bonito, um céu muito azul abraçava as árvores e as cruzes dos jazigos. Muitos nomes, grandes monumentos erguidos para a morte, para a última algoz. Essa que ontem levou Adônis e amanhã, bem sabemos, a nós todos.

"Em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo, Amém. Adônis, marido tão dedicado, pai tão afetuoso..." dizia o padre em seu pequeno discurso.

***

"Dor, muita dor é o que sinto" disse Adônis a Miriam. Os tratamentos e terapias de nada adiantavam. Há seis meses houve uma melhora sensível, Adônis voltara a andar, chegou a dar uma passada rápida no escritório. Todos ficamos felizes quando soubemos que ele iria até o escritório, mas entramos em choque quando vimos a triste figura do amigo: metade de seu peso, com olheiras que mais pareciam poças roxas debaixo de olhos sempre marejados, como se houvesse acabado de chorar por horas a fio. Um leve tremor em duas mãos exibiam toda a sua fraqueza e um sorriso idiota estampava seus lábios. Amparado por Miriam, em um vestido sóbrio e bonito, ela cumprimentava a todos. Adônis deu bom-dia a todos, mas pouco mais disse do que um comentário sobre sua sala fechada, sombria e sobre a nova placa da APL. De resto, Miriam cuidou de dar os mínimos detalhes das agruras e dos avanços de Adônis, que meneava com a cabeça, concordando com sua esposa em tudo. Essa foi a última vez que todos os sócios juntos viram Adônis, e a penúltima que o vi.

"Por favor, entre Paulo. Sente-se." disse Adônis, há dois dias, para mim.

"Com licença, Adônis. Como está, meu velho" disse eu, com um grande sorriso no rosto e a camisa do Palmeiras nas mãos, seu time do coração.

"Cansado, meu velho. Cansado dessa vida doente, inválida" lamentou-se Adônis, já com olhos cheios d´água. Meu coração começou a apertar, devagar.

"Reaja, Adônis, reaja. Que é isso meu filho? Você é um destemido ou não é? Hein, rapaz? Lembra-se? Destemidos?

Nesse momento, Miriam bateu na porta e entrou com uma bandeja nas mãos, um copo d'água, dois comprimidos. Deixou no criado-mudo, balançou a cabeça como se disse a Adônis que estava na hora dos remédios e saiu, me dando um sorriso agradecido.

"Mas não chamei você aqui para chorar mais do que venho chorando esses meses todos. Há três semanas não durmo, com dores em todo o corpo. Todas os exames de doenças comuns, oportunistas, câncer e afins deram negativo, estão refazendo todos eles, exames insuportáveis. Os médicos acreditam que seja mesmo caso de psiquiatria, tenho tomado uns remédios estranhos, que me fazem ter alucinações horríveis, sonos profundos e pesadelos apavorantes. Não bastasse tudo isso, ainda agüento a bondade exacerbada de Miriam, que não sei se é amor ou pena. Meus filhos passam pelo meu quarto como se entrassem na sala do carrasco, tristes, deprimidos. Realmente estou cansado meu amigo. E você é o único no qual confio para me tirar dessa agonia...

"Adônis, eu não..."

"Escute, você não fará nada demais. Eu já tenho tudo esquematizado, preciso apenas de um empurrão, pois já estou morto. Já entendi o que fiz, para mim e para o mundo. Deixei pouco mais de 90% de todo meu dinheiro para diversas instituições de caridade, não sem antes consultar um advogado e fazer um teste de sanidade mental. Tudo sem Miriam saber. Eles saberão se virar com 10%".

Nesse momento, uma lágrima rolou do rosto de Adônis. Pegou a pílula, pousou sobre a língua quase branca, derramou a água sobre ela e engoliu o remédio, fazendo "glup". Enxugou os olhos lacrimosos e a boca umidecida pela água, fechou os olhos por um longo tempo, suspirando algumas vezes e continuou

"Eles saberão. Então preciso apenas de um favor. Vá até esse endereço e lá você pegará um potinho. Nesse potinho haverá o veneno que me levará daqui de uma vez por todas. Mandei preparar algo que não deixa vestígios e age lentamente, em mais ou menos 7 horas. Ou seja, você não será suspeito. Mas preciso que você traga isso para mim, pois eles não entregam. Você me ajuda, Paulo?

Tudo girou perante meus olhos, talvez minha pressão tivesse se alterado naquele momento. Com aquele pedido tão paradoxal, por ser insado por um lado e completamente lúcido do outro.

"Eu já vi a luz, Paulo. Já sei onde ela está. Só preciso do veículo para chegar lá. E você é a única pessoa..."

"Está bem, Adônis." disse eu, já com lágrimas nos olhos. "Acredito que não conseguirei negar isso para você."

"Obrigado." disse o moribundo amigo, pousando sua mão esquálida e macilenta sobre minha mão. "Obrigado."

Despedi-me de Adônis num abraço e rumei para um boteco bastante copo sujo na região do Paraíso, onde ia apenas quando precisava ficar realmente sozinho, sem ninguém, apenas para pensar nos problemas e beber uma cerveja. Nesse dia, após o pedido de Adônis e 5 cervejas sozinho, voltei cambaleante para casa. Acolhido pela minha mulher, chorei em seu colo e contei que Adônis estava em seus últimos dias. Não contei que faria o que faria, pois ela não deixaria eu sequer sair de casa e, caso a contrariasse, me chamaria de assassino para o resto de nossos dias, por mais que entendesse. Os olhos baços de Adônis não me saíam da cabeça, desespero, completo desespero. Muito mais do que naquela feita, onde me contou seus planos de fuga. "E você é a única pessoa..." disse Adônis, e por muito tempo fui essa pessoa. Decidi comigo: não iria fazer a última vontade de Adônis.

***

"Vão em paz e que o Senhor esteja convosco"

"Amém" respondeu um uníssono de vozes entristecidas ao padre que se despedia. Lentamente as poucas pessoas do enterro se dispersavam, olhando para os coveiros que terminavam seu serviço e arrumação da laje. Os olhos baços e a pele macilenta de Adônis jaziam naquele buraco cavado na terra. Também ali estava a vontade, a resistência e a loucura de Adônis, que tanto pela vida fez, inclusive sair dela, numa despedida sem qualquer pompa ou atrativo. Miriam, tentou conversar comigo sobre Adônis e minhas respostas sempre foram bastante evasivas. Ela dizia que ele perguntava muito por mim. E disse também, antes de o médico pronunciar "Acabou" e cerrar seus olhos, depois de horas de agonia e desespero, Adônis sussurou:

"A morte acabou. Não existe mais."

FIM

(Conto em capítulos livremente inspirado no livro A morte de Ívan Ilitch, Lev Tolstói, tradução de Boris Scneiderman, Ed. 34)