Gota

Chuva

A infância nos persegue e essa é uma das delícias da vida. Se prestarmos bem atenção em cada passo que damos pelas ruas vamos lembrar de fatos que estão bem dentro do coração da gente, guardadinhos nos escaninhos identificados por garatujas infantis em inscrições como: "rua de casa", "carrinho de rolimã", "brincadeira de casinha", "brincadeira de médico" (no fundo desse pequeno armarinho) e por aí vai. O cheiro de doce feito pela avó, as broncas da mãe, as maldades do irmão mais velho, os amiguinhos, a escola, apavorante escola. Ao vermos o asfalto fumegando em dias nos quais os termômetros quase estouram lembramos das corridas descalços (ou com o chinelo havaiana preto) que queimavam a sola do pé, deixando quase em carne viva. Quando sopra o vento na cara, vêm as capuchetas e as pipas no alto, plainando, cortando, dando guinadas lindas no ar. Quando esfria, logo vem a Sessão da Tarde, com Goonies ou Benji, bolinho de chuva e chocolate quente. E quando chove?

Hoje toda minha infância se desdobrou em claros tapete de raios solares entre os prédios paulistanos. Descia eu a Frei Caneca, rumo a minha casa, com pressa por um compromisso e também por saber a chuva se aproximando impiedosa, a tempo de cair das nuvens pretas que esses dias se formam todas as tardes, pelo calor insistentemente senegalês que faz na antes conhecida como Terra da Garoa. E quando olhei para cima, por acaso, para atravessar a rua, vi aquela parede de chuva que se aproximava, lenta, enquanto alguns pingos perdidos se faziam presentes em camisetas e bolsas e nos poucos guarda-chuvas que se abriam onde a chuva caía. E o menino Peterso corria, alegre, com seu cabelo grande e cheio, seus olhos brilhantes e sorriso de dentinhos tortos, muito magrinho e mais alto que as outras crianças que o acompanhavam. Num segundo vi essa cena muito real, meninos fugindo da chuva que se aproximava e depois, quando finalmente ela os vencia, a brincadeira nos riachinhos que se formavam nas descidas do bairro do Jaraguá.

O Peterso de hoje passou vontade, o que não costuma fazer: não foi de encontro à chuva e a festejou como bem poderia e deveria ter feito. Teve pudores, tinha horário, tinha obrigações e trabalho. O Peterso de 28 anos deixou que seu menino zombasse dele, caçoasse dos grilhões que o aprisionavam na normalidade. Esse Peterso adulto teve vontade de tocar a chuva com as mãos do menino, que fosse por uma última vez. No entanto virou-se, com um sorriso satisfeito se despediu de seu menino, e voltou a ainda assim bela realidade.