Quem te leu, quem te lê

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“Ei, aqui!”

Ouço um sussurro, quase um farfalhar. Me assusto, estou numa pequena livraria, dessas que passam de geração para geração no mesmo local e sobrevivem tão-somente pelo amor que têm ao livro. Estou sozinho numa pequena saleta de “degustação”, duas poltronas com seus braços trabalhados e o couro vermelho de seus assentos trazem dignidade ao local um tanto decaído. Uma senhorinha, de olhos muito azuis, tira pós das estantes na sala contígua e resmunga num idioma incompreensível, gutural. A menina do caixa, neta da senhorinha, apenas tira os olhos do computador para dizer, de quando em quanto “Oma, das geht schön!” — “Já está bom, vó”.

“Psiu, esquerda!”

Novamente um sussurro, um resfolhear me deixa surpreso e curioso para saber de onde vem aquela voz tão fraca. Olho para a esquerda, apenas livros. Dou de ombros, desconfiado. A senhorinha passa pela entrada da saleta e pergunta:

“O senhor está bom?”, num sotaque alemão carregado. Seus olhos me examinam inteiro, quase invasivos.

“Estou bem sim, obrigado”, respondo rápido. Virando as cotas, ela resmunga “Qualquer coisa, chama Helga” e sai.

Quanto volto aos livros, um deles, exposto num aparador a minha esquerda se mostra aberto nas primeiras páginas. Pego-o, fechando sua capa, analisando o título em vermelho. “Finalmente” zombe o volume em minhas mãos. Solto-o no chão com um grande estampido. Incrédulo, pego-o novamente o livro. Estou ficando maluco, penso, mas logo me dei conta que não.

“Sei que é estranho” sussurra a brochura “mas eu falo. Aliás, aprendi a falar, pois sabia que hora ou outra alguém me ouviria, me pegaria nas mãos, me levaria daqui. Todos os meus irmãos já foram, restei eu. Você vai me levar, não é?”

Hesito primeiro em responder. Afinal, não iria dar trela para um livro, por mais importante que fosse. Porém, acabo cedendo à curiosidade:

“Quem levou seus irmãos?”

“Diversas pessoas” começou o livro. “Éramos dez aqui, porém eu era o último da fila. Estou aqui há anos. A loja vende pouco, sabe? Apesar da ótima localização, pelo que ouvi dizer, perdeu espaço para as grandes livrarias. Helga sempre reclama que não tem clientes. Os poucos que tem são fiéis, ao menos. Meus irmãos foram levados, um a um, por clientes esporádicos e alguns habituais. Uma madame, que corou ao ver nosso título e levou o primeiro, como se fosse mercadoria roubada. Um senhor de óculos grossos que sempre senta aí e lê por horas a fio. Deu boas risadas antes de levar o segundo. Um moço, com seus dezoito anos, bolsa tira-colo, piercing. A irmã de Helga, que adora colecionar livros de capas coloridas. Um médico com ares de galã, um filósofo barbudo que dizia “que horror” a cada página que folheava. Um casal feliz, por iniciativa do marido, um homem franzino com cara de sabichão. Um foi por encomenda e o penúltimo foi roubado, pelo que ouvi. Sobrei apenas eu.”

A voz, no fim de suas palavras, é chorosa. Olho para os lados e digo, em seguida: “Se eu te levar, promete ficar quietinho?”

“Prometo”, respondeu o livro, quase eufórico em seu sussurro.

Sigo em direção ao caixa. Trinta reais, diz a menina, olhando para o livro sem esconder um sorrisinho maroto. Pego a sacola com o livro de suas mãos, despeço-me de Helga, que se apóia em uma vassoura e me olha com ares de reprovação e corro para casa, para saber o que aquele livro, com aquele título tão capcioso, tem a me contar...