Naquele burburinho ensurdecedor de pessoas, qualquer tentativa de se fazer ouvir era inválida; eu, que tão acostumado ao ressoar de vozes em algazarra estava, me vi em pleno desespero na Grande Avenida Pontuda. Em meio ao caos dilacerante das buzinas-verdes, freadas-amarelas e gritos-vermelhos, entrei numa rua estranha, confusa, de portas tremeluzentes de néon. Uma delas, discreta, cinza e limpa me atraiu de pronto. Dei um forte empurrão, porém apenas um vão com o tamanho do meu corpo se abriu; por ele entrei e senti o alívio dos sons ribombantes desaparecendo quando, por encanto, ela se fechou atrás de mim.
Era uma sala sem cantos, grande círculo emparedado. O teto abaulado encerrava a redoma alva da qual eu era cativo, nem um ponto, nem uma imperfeição, apenas o branco puro, imaculado, acusador. O sangue pingava de minha boca e nariz, tingindo o chão alvo que aos poucos absorvia o líquido escuro, tornando o chão novamente límpido. Chamei por ajuda, gritei e o silêncio me respondia irônico que ninguém podia me ouvir. Tateei as paredes, passei as mãos pela placa contínua e branca sem, porém, encontrar um greta, por minúscula que fosse. Não entendia aquilo, se era sonho, pesadelo. Toquei meu próprio corpo para sabê-lo real. Transtornado bati com força a cabeça no paredão e o baque lancinante me fez urrar filha-da-puta, enquanto me afastava de costas, cego de dor. Ouvi, então, sussurros do outro lado da redoma, corri ansioso para encostar a orelha no branco. Vozes confusas diziam comida, remédio e noite, noite. Bati aos berros e senti como era firme a jaula na qual estava confinado. Tentei lembrar o que havia acontecido antes dali, antes de entrar nesse mundo leitoso, e um vazio se instalou, plácido, irritante: não sabia direito como chegara até esse lugar.
Um ruído seco no meio da sala me fez virar. Era uma tigela fumegante que surgira do nada, com uma pequena placa ao seu lado. Numa letra que reconheci minha estava escrito: coma. A fome já principiava em roncos e estalidos do meu estômago. Sorvi o líquido em grandes goles, engasgando com os pequenos pedaços de carne da sopa rala. Ruídos de roldanas tiritavam ao meu lado, depois barulhos de carros, sirenes, Gritos; eu seguia a tudo, correndo alucinado, buscando os sons, me debatendo nas paredes descoradas, em fúria.
Cansado, me entreguei ao sono. Sonhei que era menino de novo, entre árvores altas. Por entre galhos verdinhos coava-se brincalhona a luz do sol da manhã. Olhei ao longe um apinhado de pessoas chorosas. Estávamos em um cemitério, algo sujo e descuidado. Um imenso mar de cruzes brancas se estendia diante dos meus olhos, de covas rasas, pensei, e comecei a olhar os nomes, datas e as pequenas fotos fantasmagóricas. Algumas fotos de crianças me entristeciam, queria alguém para brincar. Me aproximei devagar daquelas pessoas, reconheci algumas, não todas. Não me perceberam, meu corpo pequeno se esgueirava entre elas, queria ver o morto, numa curiosidade mórbida. Então, às margens da cova recém-cavada pelos magros coveiros que esperavam impacientes a descida, vi um caixão de criança. Porém, lá dentro, braços e pernas adultos pendiam, feridos e lacerados. Era eu, apenas cabeça e tronco dentro da pequena caixa decorada. Chorei um pranto estranho, alheio, como sem não viesse de mim. Então abri os olhos, assustado, e ouvi:
— Ele acordou! Chame o doutor Lopes, agora...