A Rússia e seus sonhadores

Acabei de ler A senhoria, de Fiodór Dostoiévski, numa edição bem bacana da Editora 34 (tradução de Fátima Bianchi, gravuras de Paulo Camillo Penna). Cada leitura de um autor russo me deixa mais apaixonado por essa literatura ora fantasiosa, ora realista demais, cheia de mujiques (os camponeses russos), de mistérios e lendas. E o Dostoiévski é um caso totalmente à parte, com suas experimentações psicológicas na época em que psicologia ainda era algo distante da realidade e a representação dos insatisfeitos com o mundo.
Na pequena novela, Ordínov (nome que deriva de ord, em russo espectro, sombra), um órfão nobre e esquisito, que se dedica aos estudos da ciência, vê uma jovem numa igreja, uma santa aos seus olhos, com o fervor em beatitude defronte aos ícones e anjos. Ao lado da jovem, um velho misterioso a vigia sem hesitar, protegendo-a de olhares maliciosos. Mas o coração de Ordínov é puro e busca aproximar-se do casal, pois sua vida até então vazia de significado encontra novamente uma luz para seguir e fará de tudo para chegar ao seu objetivo. Porém, muitas supresas o aguardam nessa busca incansável.
A surpresa toda não está apenas no rumo inesperado que a história toma, mas também na maneira onírica pela qual toda a trama se desenvolve. Como num sonho ruim, incômodo, Ordínov se embrenha na relação estranha da jovem Katierina e do velho Murín, na conturbação daquele mundo distante da realidade de Ordínov que o leva à doença, ao delírio e até mesmo à fantasia desenfreada. Não é uma caminhada fácil ao lado do flaneur protagonista da novela, mas vale por ser uma degustação do grande Dostoiévski.