Naquela tarde eu me irritei. Há tempos, há muito tempo isso acontecia e me irritava profundamente. Eu gosto muito de música e sempre que eu colocava música, em qualquer altura que fosse, um barulho ensurdecedor vinha do andar de cima. Reclamava com o zelador, com os outros vizinhos, comentava com amigos e nada. Desligava o rádio, o barulho cessava. Ligava o rádio, bem baixinho, e lá vinha o barulho.
Um dia, belo e de céu azul com sol resplandecente, resolvi tomar uma atitude. Subi ao andar do vizinho e decidir falar com ele. Mas não sabia o que fazer, o que falar, por que tocar sua campainha, pois o silêncio lá dentro era tumular. Então resolvi esperar e com isso concatenar na minha cabeça meu discurso de respeito ao vizinho, de convivência pacífica, de atitudes que eu poderia tomar contra o idiota canguru que me assolava com suas passadas de gigante ao mínimo sinal de música, como a me punir pelos meus gostos musicais, que nem são ruins. Imaginei o tamanho do vizinho. Seria ele gordo, com barba por fazer, truculento e fedido? Iria me encarar, arranjar um qüiprocó imenso pelo meu pedido gentil de silêncio. Ou seria magro e alto, desengonçado, por isso faz tanto barulho na minha cabeça? Poderia até ser uma vizinha, mas teria que ser alguém com muito chumbo nos pés para fazer tantos tuns-tuns-tuns. “Por favor, eu gostaria de ter paz, então pare de pular enquanto eu ouço minhas músicas, obrigado.” Eu poderia escrever isso, deixar debaixo da porta e sair feliz, esperar que ele (ou ela, ou o que quer que seja) fosse até a minha casa tirar satisfação. Mas não, eu não sou assim, eu enfrento meus medos. Então esperei sair, e esperei sair preparado, pois ia tomar satisfações.
Duas. Três. Quatro. Quatro horas e quarenta e cinco minutos depois a chave girou, lenta. A maçaneta, numa abaixada abriu a porta num vagar impressionante.
Era um senhor, de seus 70 anos. Magro e corcunda, com olhos que faiscavam, muito mais vivos que os meus olhos jovens. Tinha movimentos compassados, quase que calculados. Abriu a porta o suficiente para que seu corpinho passasse, parou-a com uma mão, enquanto a outra enfiava novamente a chave na fechadura. Baixou a maçaneta, olhou para os lados, puxou a porta para si. Girou duas vezes a chave, testou novamente a maçaneta, sem se aperceber de mim, um ritual milimétrico. Depois virou-se e disse:
— Boa noite, meu rapaz.
— Boa noite, eu gostaria de falar com o senhor.
— Comigo? Mas que honra! Há muito tempo ninguém vem até aqui falar comigo. Será um prazer falar contigo, quer tomar um café, podemos entrar...
— Não, não, não, obrigado. Gostaria de falar com o senhor sobre o barulho.
— Barulho? Qual barulho? Apesar da minha idade ouço muito, muito bem e não ouvi nenhum barulho.
— É o barulho que o senhor faz quando eu coloco música. Eu gostaria de pedir...
— Ah, meu filho... – disse isso colocando as mãos nos meus ombros e empertigando-se para ficar quase da minha altura, lutando com sua corcova dromedária – tenho um sério problema. Ouço bem demais e ainda uso um aparelhinho de surdez, invenção do meu filho não sei pra quê. Então ouço tudo que acontece nos andares de cima e de baixo. A louça sendo lavada nos apartamentos do fundo, as mijadas e cagadas do andar de cima, as transas enlouquecidas dos apartamentos contíguos ao seu. E sua música, sempre tão bela, me dá vontade de dançar. Não tenho aonde ir, não tenho ninguém, apenas sua música para me divertir. Então danço com bastante vontade. Se te incomodei...
— Não, não, não. A partir de agora, venho aqui dançar com o senhor.
— Está combinado então! Meu rapaz, que Deus lhe abençoe.
Então, a partir desse momento, o silêncio se fez.