Pequena lembrança


Lembro de estar na frente da tela. A tela do computador envolta em fumaça de cigarro, um pigarro vem constante, irrita, torna-se grosso, viscoso na garganta. Sinto uma tontura e o pigarro do cigarro a se prender no gogó, meto o dedo na goela e sinto a língua áspera, espero que o catarro venha verde e caudaloso, numa cusparada certeira. Mas não vem. E lembro que sinto o pigarro rastejar por dentro, arranhando traqueostômico, como se quisesse sair, mas não pelas vias normais, orais, mas dali mesmo, escavando a garganta para escorrer espesso pelo meu peito. Corro ao banheiro com ânsia, ávido por me livrar daquela coisa, não consigo chamar de outro modo, coisa que me engasga tirando o fôlego; lembro como puxo com um gargarejo o que sinto crescer no pomo de adão, como se tivesse braços e por um momento vejo minha garganta inchando, como se empurrada pelos dois lados com mãos, patas, algo mais fundo que uma dor de alma, que a angústia que comprime, que o medo. O medo de que aquilo saia também era grande, eu lembro, pois não sei o que é. Não é bicho, que será? Lembro de meus olhos se arregalarem, saltarem quase do rosto, o esforço me fazendo colorido: vermelho, arroxeado, manchado de tons escuros. Percebo que a coisa desce devagar, atrevida, debatendo-se por entre meus órgãos surpresos, senão atônitos diante daquela "novidade". O coração batuca num compasso que não é meu e o estômago embrulha e só então eu entendo que o estômago se fecha como um tatu-bola para se defender. Um embrulho sobre as tripas. Sento no vaso sanitário e percebo que está sujo, com respingos de mijo e o resto de uns restos que ficaram ali para contar alguma história. Lembro que só percebo, não me importo, pois estou morrendo. Acho que estou morrendo. Suo e tremo como se a gadanha da Maldita se esfregasse no meu pescoço, antes fosse mesmo a foice para tirar de mim aquela coisa que subia e descia desavergonhada por entre minhas carnes. Num último esforço expulso pela boca algo do tamanho de uma uva Itália, nem mais, nem menos. Uva cinza, porém, de um cinza poluído, estragado, rançoso. Dois olhos se abrem dessa toda-nojeira e me olham como que num sorriso. E daí para frente não lembro mais nada...