A Luna vai me matar. Ontem era meu prazo final para participar do Abre Aspas II, uma blogagem coletiva sobre poesia. E acho que vai me matar duas vezes, pois não vou falar propriamente de poesia, mas de prosa poética. Explico: meu grande amigo Marcos Pontes, aquele que acabou de lançar seu segundo livro, o D'Acola, me presenteou com algo que quero dividir com vocês: A misteriosa chama da Rainha Loana, romance do Umberto Eco (Ed. Record, Trad. Eliana Aguiar). No dia que ganhei, folheei umas dez páginas e me deu um clique: isso é prosa poética. Compartilho com vocês o início do romance:
"E o senhor, como se chama?"
"Espere, está na ponta da língua."
Tudo começou assim.
Era como se acordasse de um longo sono, e no entanto ainda estava suspenso em um cinza leitoso. Ou quem sabe não estava acordado, mas sonhando. Era um estranho sonho, desprovido de imagens, povoado por sons. Como se não visse, mas ouvisse vozes que me contavam o que devia ver. E contavam que eu ainda não via nada, exceto um fumegar ao longo dos canais, onde a paisagem se dissolvia. Bruges, disse a mim mesmo, estava em Bruges, já estivera em Bruges, a morta? Onde a névoa flutua entre as torres como o incenso que sonha? Uma cidade cinzenta, triste como uma tumba florida de crisântemos onde a bruma pende desbeiçada das fachas como um arrás...
Essa linda passagem abre a história de Yambo, senhor de meia-idade de vasta cultura que, após salvar-se de uma grave doença, perde parte da memória biográfica. Para recuperá-la, passa um longo período nas montanhas do Piemonte e trava contato com objetos que marcaram sua infância: jornais, discos, quadrinhos, um imenso parque (ou cemitério) de objetos. Uma espécie de autobiografia desse grande mestre da literatura italiana, que também é tradutor, estudioso de semiótica e intelectual de primeira. Pelo início, dá pra sentir que o Sr. Eco não brinca em serviço: prosa poética de primeira.