Confissões

Sim, confesso, tenho vícios. De alguns me envergonho, como o ultrajante tabagismo, do qual preciso me livrar. Outros, travestidos em virtudes, me assomam com mais freqüência que os tubinhos nicotinados e não assassinam com tanta brevidade. Dentre esses destaco dois que me perseguem com mais ímpeto nos últimos tempos e que não são excludentes, mas complementares: ler e escrever.

O velho Aurélio apregoa, sem pejo, que vício (entrada número 4) constitui "conduta ou costume censurável ou condenável; libertinagem, licenciosidade, devassidão". Ora, chegamos ao ponto crucial da minha confissão: a devassidão. Minha relação com a palavra não pode ser menos que devassa, visto que meu intento é ter intimidade total e irrestrita com ela. E nessa tentativa de mergulhar nos meandros da língua, perco a medida, os rumos e toda a compostura quando tenho um livro nas mãos. E se as palavras não se entregam, não se rendem facilmente, chego ao ponto de seduzi-las, aliciá-las e, num último esforço, violentá-las. Muitas vezes o jogo se inverte, torno-me vítima de quem antes fui algoz, sou escravizado, me prostro diante de tantas vozes que ecoam nos imensos corredores sórdidos de palavras sorrateiras.

Essa libertinagem estende-se também ao ato da escrita, lastreado pela ignominiosa pulsão da leitura. Não me dêem, por favor, uma caneta e um papel. Não me deixem à mão tela e teclado. Deles munido, não consigo deter aquele que me toma de assalto, quase como uma possessão demoníaca essa, do escritor. Como na história do Doutor Jekill e Sr. Hide, dispo-me da pele de bom cidadão cumpridor das leis e dou asas a essa incauta tarefa de brincar de Criador: dar vida e voz a seres inexistentes, impondo-lhes situações mais ou menos absurdas, traçando-lhes o destino e decidindo pela sua existência. Há ato mais cruel que a criação literária? Há loucura mais varrida que o desajuízo do escritor? Quantos homens não foram assassinados, empobrecidos, falidos, quantos não mataram, desapareceram, ingressaram em mundos insanos, desajustados? Quantas mulheres não sofreram nas mãos de homens sem escrúpulos, esses mesmos criados por mãos nefastas, insensíveis?

Porém, quantas princesas não foram salvas? Quantos caráteres não se formaram e se fortaleceram pelo simples passear em páginas de maravilhas? Quantos mundos não se abriram aos olhos daqueles que não podem sair de onde estão, por medo ou por algum impedimento? Se pensarmos assim, subvertemos toda a confissão e me torno um virtuoso, ser benigno, que tem nas mãos o poder de fazer o bem imperar em terras vadias. E esse é o perigo da escrita. Essa é a armadilha da leitura.

Escritor e leitor confesso, esse sou eu.
[Publicado originalmente em Letras & Vozes.]