Ivan e Domiciana

“Sua égua! Palerma. Fica aí que eu tô chegando.”
Ouvir daquele que tanto amava tamanha grosseria era navalha no peito. Doía aquela rispidez na voz, lanhava como garras dum bicho incontrolável. As lágrimas se negavam, mas os olhos, vermelhos. Sangue.
Égua. Palerma. Fica aí.
Não podia querer isso. Não suportava. Era moça ainda, não podia estar à mercê. Égua. Sentia nas suas veias minguar o que tinha de mais precioso, seu calor, o coração lhe brotava da boca em soluços. Palerma. Era assim que a via, uma estúpida a seu bel prazer. Sangue. Seu passado, como um filme realista, projetava-se à sua frente. E como era linda. Agora era cinza, uma pedra. Adorava trajar vestidos coloridos, maquiagem bonita, seus cabelos tinham viço, negros como a graúna. Hoje perdiam o brilho, seu rosto era talhado em sofrimento, suas roupas davam dó, não pelo estado, mas pela sua falta de vida. Monocromática.
Era inteligente também, lia tudo que à mão lhe vinha, incansável pelo saber. Os clássicos brasileiros lera quase todos, até os estrangeiros já lhe encantavam quando o conheceu. Desde então sua vida se resumia ao seus caprichos, ao seu desmandar desmedido. Arrumara um empreguinho de manicure e se esforçava para ter um pouco de dinheiro para si. Via o amor como uma gosma pegajosa que lhe paralisava. Aquilo era uma doença, lhe deixava aleijada do mundo, sentia o torpor do sentimento que os poetas exaltavam como nobre. Mentira. Sangue.
Esperava por ele numa rua movimentada. Sentia vergonha por seus olhos vermelhos de choro, as pessoas a olhavam com pena, tinha vontade de lhes perguntar o que havia, se nunca tinham visto uma mulher chorar. Não tinha forças, ele as minara. Esperava para voltarem para casa, ele talvez tivera um dia ruim, ela deveria entender. À merda, pensou, não preciso entender nada, ele que se segure da próxima vez. Não ficaria assim, aquele disparate seria o último, não suportava mais uma gota do que ele vomitava em seu peito, em seus olhos, cegando-a, manchando sua vida, seus sonhos, suas fantasias.
Um sorriso lhe brotou do rosto. Avistou, numa larga vitrine iluminada, um vestido vermelho, vivo, longo. A manequim dançava à sua frente, rodopiava, o tecido leve esvoaçava pelo vidro límpido, fazia um barulho de onda do mar quando tocava o chão branco, as paredes brancas. Os detalhes brilhantes no decote ousado reluziam sob as lâmpadas dicróicas, quentes luzes sobre sua cabeça. Ela dançava e as pessoas olhavam, admiradas, maravilhadas com seus negros cabelos soltos em giros cada vez mais fortes. Ouvia músicas retumbantes, seu peito arfava. O vermelho lhe tomara as unhas, os braços, as pernas, o sexo, os olhos, os cabelos, era toda vermelha. Uma tocha, ardia e crepitava, levitava, rodopiava.
“Porra, você não tem jeito. Me liga pra falar que vai ver vestido não sei onde, sabe que eu trabalho o dia todo e quero ir pra casa e você quer passear? Faça-me o favor.”
Tanto quanto ele, ela trabalhava. Doía em seu peito. Sangue. Não suportava mais.
“Você fica de putaria o dia inteiro naquele trabalho, não faz bosta nenhuma, ganha merda nenhuma e ainda quer ficar dondocando? Idiota, isso que você é.”
Aos gritos me humilha, pensa ela. Em silêncio eu te calo. Lágrimas brotavam de seus olhos, mas a tristeza dera lugar ao vermelho.
“Agora vamos pra casa. Tô cansado desse centro. Cansado de tudo. De você inclusive.”
“Eu não vou.”
“Quê?”
“Eu não vou.”
“Tá louca, mulher? Você enlouqueceu? Vou ter que te levar à força, é isso?”
“Eu não...”
Ele pega em seu braço, sua mão envolve todo seu punho. Coloca a mão dentro da bolsa, procura algo. Ele aperta seu braço com força, seus olhos saltam do rosto em fúria, ele levanta a mão para um tapa. O golpe é certeiro.
Ela sorri. Olha o homem caído no chão, com o alicate de unha cravado no pescoço, na jugular. Sangra até a morte, porco imundo, pensa ela. Vira as costas, pessoas gritam desesperadas, o tumulto é grande, ninguém a percebe. Ela é imperceptível, magra, cabelos sem brilho, olhos fundos, longo vestido preto, luto. Quem fez isso, grita alguém, quem fez? Ninguém viu. Foi rápida, certeira, como nunca havia sido. Caminha lentamente, em direção ao ponto de ônibus. Pensa que nem ela, nem ninguém mais sofrerá com o crápula. Nem os filhos, nem os próprios irmãos dele sentirão falta. Malquisto. Mal visto. Um segundo de medo lhe toma o peito, como num furacão, desgoverna sua mente. Ela se ampara em uma parede, prédio bonito. O porteiro lhe pergunta se está tudo bem, se precisa de algo. Ela diz “não, já tenho tudo que preciso agora”. 
E o vermelho, tão lindo, guiou seus olhos até o infinito da tarde cinza.
(Originalmente publicado em Letras e Vozes, com alterações)