Pés molhados

Calor. O vento cheiroso d'água prenuncia a chuvarada. Dentro de meias grossas e tênis pretos de pano, estavam eles, primeiro úmidos pela chuva incipiente, quase carinhosa, garoa leve, leviana, chegando aos poucos e tocando a pele, causando arrepios. Abrem-se os guarda-chuvas num festival de solavancos, as varetas como braços bailarinos, quase sincronizados, pretos, azuis, rosas, desenhados, lisos, flap, flap, grandes, pequenos, flap, flap.

E lá seguem os pés molhados, sentindo o gotejar mais grosso, encorpado, e os corpos se encolhem ao máximo, sob toldos fogem da chuva que os abraça, envolve, escorre. Se diverte, acho, a chuva batendo em revolviradas revigoradas, lufadas maldosas que balangandançam sedas e varetas de guarda-chuvas que parecem tomar vida e querer fugir, também se abrigar nos pontos de ônibus, nas bancas de jornal, sob marquises enegrecidas pela poluição lavada. 

Já esbranquiçados e enrugados pensam que pegarão uma gripe assim.  Pensam em como ficarão com cheiro de cachorro molhado, mofo velho e sei lá mais o quê. Fazem um barulho esquisito, como se os narizes que não têm escorressem, num chup-chup ininterrupto, plof-plof que não para da pele na meia no forro do tênis molhado por inteiro. Bate um ventinho frio, eles tremem, os pés molhados. 

Querem logo chegar em casa e banhar-se na água quente do chuveiro que deságua morno dentro do pequeno banheiro e embaça janelas e vidros. Enquanto lá fora segue a chuva, agora pequenina, de volta a garoa graciosa, que toca em todos, goticulante, como num beijo de boa noite.