Diga-me o que cheiras...

Não sei bem quando surgiu meu fascínio pelos odores, sei que deve ter sido na minha meninice, quando brincava de casinha com minhas amigas e fazia bolo de lama e o cheiro de terra úmida se prendia aos meus dedos magros. Ou o cheiro dos xampus e cremes pós-banho que minha mãe usava e que, escondida, eu roubava para imitar as atrizes da televisão, que com uma toalha na cabeça e outra enrolada no corpo faziam movimentos lentos e sensuais perna acima, perna abaixo. Depois o primeiro perfume que escolhi numa loja de departamentos, sob os olhos da mãe que diziam, marejados, minha filha já é uma moça.

Desde então me tornei uma obsessiva cheiradora: do cheiro da casca de tangerina sendo descascada, dum azedume poroso e irritante, passando pelo cheiro de capim-manteiga, forte e enjoativo quando capinado, ao cheiro de pele suada, naquela viscosidade sensual de pernas e braços que se enlaçam. Tudo que tem cheiro me atrai, cheiro os livros antes de comprá-los e sei que vou adorar quando o aroma me envolve, cheiro qualquer alimento antes de ingeri-lo, coisa que as pessoas sempre olham com desconfiança. E não adianta explicar, dizem que é má educação, que não é de bom tom. Que se dane, eu cheiro mesmo, pois quero me entregar àquele objeto, àquela comida, àquele perfume antes que ele se entregue a mim, antes que eu o devore com os olhos ou a boca, que eu o consuma. Quero me sentir impregnada do hálito daquele que em seguida estará dentro de mim, quero saber antes o cheiro do gozo que se anuncia.

Meu nariz é meu leme, meu radar incansável, meu guia na cegueira fantasiosa dessa nossa realidade. Minha verdade vem antes pelo odor, pelo que exala e que me conduz às profundezas de mim mesma. Preciso desesperadamente do cheiro, como outros precisam do toque, do olhar, do gosto. Patrick Suskind, escritor alemão e grande sábio na minha opinião, no epílogo de seu livro O Perfume diz: "... as pessoas podiam fechar os olhos diante da grandeza, do assustador, da beleza, e podiam tapar os ouvidos diante da melodia ou de palavras sedutoras. Mas não podiam escapar ao aroma. Pois o aroma é um irmão da respiração. Com esta, ele penetra nas pessoas, elas não podem escapar-lhe caso queiram viver."
E pra ser sincera: dá pra confiar em algo que não tenha cheiro? 

(Texto originalmente publicado em Letras e Vozes, alterado aqui no Vermelho Carne. Excercício proposto pelo querido amigo João F. Cunha, no qual tínhamos que fazer um texto femino. Acho que cheguei perto... )