Mi camino, cariño

começou. na hora da saída o vendaval sem hora para acabar e eu num minúsculo guarda-chuva eu num canto da cidade-monstro engolido em suas entranhas. estranho como a chuva parece brotar do chão escalando a canela o joelho as coxas numa tara gelada. como espadachim de florete em punho esgrimo as grossas gotas dessa chuva revolta e não há mais como fugir. sem toldo, lenço ou documento sigo o meu caminho para casa como quem vai para o cadafalso, de cabeça baixa e olhos lacrimosos, músculos retesados num frio espinhento depois do calor de asfalto derretido. quarenta-e-um-dias-sem-parar. sinto o mofo entre as páginas dos livros, entre as teclas, na virilha, atrás da orelha, o ar é lodoso. as ruas desaparecem depois das dezoito horas, são rios, riachos, ribeirinhos. Bach. na avenida da consolação nem a piedade dos motoristas alivia a chuva misturada com esgoto. e leps. leptopis. leptospirose.

olho. a janela embaça com meu hálito. ofego e afago meus braços tentando me aquecer, mas aquela visão da chuva não deixa. já estou em casa. tiro devagar a roupa colada ao corpo, quase sinto a necessidade de ter uma tesoura nas mãos e cortar a calça jeans da barra até a cintura e descolar do corpo aquele pano azul. tudo é umidade. e suor. e saliva. a nudez me liberta, mas o frio é como uma chibata. até que a chuva para. e o chuveiro chove quente sobre a minha cabeça. e tudo esquenta e a lua aparece num prenúncio de um belo dia seguinte. que fechará com um vendaval sem hora para acabar e eu num minúsculo guarda-chuva no quadragésivo-segundo-dia-sem-parar de mofo entre os rios de leptospirose.

(Texto feito especialmente para Ana Rüsche)